8 de dezembro de 2010

Do bloco de notas de Rudy O’Mark no dia 8 de Dezembro de dois mil e dez.

            Falávamos sobre o dia de ontem
            E dizíamos coisas simpáticas.
            O que é que são coisas simpáticas?
            Não sei.
            O que é que é o cinema?
            Essa é que é essa.
            É muito difícil explicar isso.
            Ontem de manhã estava um mendigo a olhar para as montras das lojas de roupa junto à rua principal; o mendigo passava, parava, olhava, tirava uma máquina fotográfica do bolso e fotografava-se a si mesmo; já sei o que estão a pensar, fotografava-se com as montras atrás para de noite se poder ver com as roupas que não pode ter, mas deixem-se de antecipações e psicanálises da treta e deixem-me continuar se faz favor: o mendigo não se fotografava com a montra atrás, pelo contrário, usava as montras como espelho, só isso, o que é uma coisa caricata de se ver, um gesto de vaidade muito bonito, sim, bonito, essa palavra, não é uma escolha errada, é completamente de propósito.
            Como é que se sabe o que é o frio dos dias?
            Foi uma pergunta que lhe fiz enquanto segurávamos os cartazes contra a coligação.
            Não me respondeu.
            Ela tinha botas grandes, de borracha.
            Às vezes apetecia-me ter botas grandes, de borracha, para me afundar na neve sem sentir os dedos frios.
            E quando eram cinco da tarde o céu estava azul escuro e estavam umas luzes azuis claras penduradas na rua principal, o primeiro enfeito natalício que vi este ano, muito simples, nada de complicado, uma linha de luzes azuis claras penduradas, uma ponta em cima do Starbucks e outra ponta em cima do Nelli’s, só isso.
            O que é que é o cinema?
            Às vezes durante o dia começo a pensar sobre jantares em que nos sentamos à mesa e ninguém diz nada, zero, um silêncio de jó até que eu começo a contar uma estória, nada de especial, nem sequer tem muita graça ou muita moral, nem a conto de forma especialmente engraçada, abrindo os olhos ou fazendo voz grossa quando as personagens são diferentes, nada disso, conto-a calmamente, e no final da estória alguns acenam com a cabeça e outros não acenam e continuamos todos sem dizer nada mas eu já mandei uma pedra para o meio que eles podem perfeitamente ignorar. Não interessa muito, é só uma ideia para ocupar o tempo. Acho-lhe graça.
            És mais um no meio das coisas.
            Foi assim que acabámos a nossa conversa quando todos se dispersaram.
            A caminho de casa lembrei-me como tudo começou.
            O noticiário está a dizer coisas parvas.
            Disseram-me na rua que havia uma manifestação na quarta-feira.
            Disseram-me na terça-feira que a manifestação ia contar com participantes ilustres e que não se ia desistir até os objectivos serem atingidos.
            Havia uma menina no meio da manifestação que usava um colar de bolas azuis por cima do casaco; pensei que era um sinal de identificação, ou melhor, um símbolo (às vezes esqueço-me que há palavras para as coisas) com um significado comunitário, mas mais ninguém usava um colar de bolas azuis por cima do casaco; se calhar até usavam por baixo mas não mostravam e isso interessou-me: o que significa aquele colar? É uma moda? É uma mensagem? É um capricho?
            O que é o cinema?
            Não posso fugir outra vez.
            Esta é que esta.
            Composição. Título: “O que é o cinema”
            O cinema é uma experiência colectiva que consiste na projecção de imagens sobre um ecrã numa sala escura perante várias pessoas. O cinema também é uma forma de arte. O cinema também é um fenómeno. O cinema também é tema de estudo, mas isso não me interessa porque não tem muita piada. O cinema, enfim, pode ser muitas coisas. Não sei se o cinema pode ser tudo aquilo que nós quisermos. Por exemplo, não sei se o cinema pode ser uma pessoa, ou vice-versa. Se se abrir um livro, um romance ou um poema, e se encontrar a frase “Aquele tipo era um filme do caneco” percebe-se a ideia e até se aprecia o estilo do autor ao construir a frase com aquela expressão. É certeira — ou pode ser, eu não conheço o tipo. Mas é difícil pessoalizar o cinema, porque ele é muito diferente, e tem muitas faces. Por outro lado, o cinema tem tantas faces como o mundo, e nós vivemos no mundo. Mas não somos só nós que vivemos no mundo. Creio que já se deu a entender a complexidade do argumento. O cinema pode ter sentimentos, ser uma carta de amor, ou uma declaração de ódio. O cinema pode ser moralista ou sacana, bruto como às cobras (nota: o autor, ou seja, eu, sabe bem que a expressão normalmente utilizada é “mau como às cobras”, simplesmente se aproveitou da mesma e recriou-a no seu estilo pessoal, arcando sobre as suas costas qualquer género de responsabilidade que lhe possa ser demandada sobre qualquer atentado à língua). Enfim, o cinema pode ser muita coisa.
            Lá fora as pessoas falam.
            Estão a falar muito alto.
            Hoje na manifestação as pessoas também falaram muito alto.
            Ponto número um: “Considerações sobre referências meta-cinematográficas na lógica pós-Bordwelliana da narrativa semiótica”.
            Bom título.
            E agora, o que é que é o cinema?
            O que é que é o quê.
            Hum.
            Ui.
            Hum hum.
            Considerações sobre este tema.
            Como é que era o grito hoje na manifestação?
            A senhora Grace virou-se para mim no final do dia e disse que eu estava a ficar gordo, para eu ter cuidado, que hoje em dia há muitos refrigerantes bons para a dieta, sem muito açúcar, ela tem um livro sobre calorias, quis ser nutricionista, é uma pessoa simpática no fundo a senhora Grace, sabe muita coisa sobre este mundo e é de louvar que alguém com a idade dela, que não é nada avançada mas que mesmo assim é muito maior do que a minha, pelo menos uns quinze anos e isso já é muito, se preocupe em saber mais e mais a cada dia e partilhe com outras pessoas os resultados das suas descobertas. Graças a deus por toda esta glória da senhora Grace.
            O grito era qualquer coisa como isto: “Clegg para a rua, a tua mãe é uma granda puta”. Não. Sim? Sim. Talvez fosse. Havia palavrões e o nome do Clegg. Filho-da-mãe do Clegg. Ele diz que faria tudo outra vez. Será verdade?
            Tenho de escrever isto até amanhã.
            Uma noite inteira.
            Duas mil e quinhentas palavras, duzentos e cinquenta de tolerância.
            Já fiz todas as leituras.
            O que é que é o cinema?
            Não sei. Não faço puto de ideia.
            Já fiz todas as leituras.
            Vou começar pelo primeiro ponto e depois vou para o segundo.
            É assim que as coisas se fazem normalmente, não é?
            Irrita-me esta vida do vale tudo.
            Se calhar gostava que valesse tudo.
            Ou se calhar não, não, não. Não gostava nada. Odiaria.
            “Os efeitos da manifestação desta manhã em Aberdeen foram superiores a tudo aquilo que se tinha previsto. O Governo escocês adiantou que está do lado dos protestantes. Na casa dos comuns ninguém mencionou o evento escocês. Existiu outra manifestação em Edimburgo, que contou com a presença de mil pessoas, sensivelmente. No entanto, no meio das fileiras da associação de estudantes fala-se em falhanço redondo. Corre o rumor de que a direcção, após este revés, planeia demitir-se, por julgar que não tem condições para o cargo. Jovens entrevistados a este respeito dizem que isso seria fugir com o rabo por entre as pernas. Mais desenvolvimentos dentro de momentos.”
            Não percebo como é que se pode viver sem televisão.
            Também não percebo porque é que se quer trocar a televisão pelo computador.
            Não é nada prático. É muito chato.


Por Martinho Lucas Pires

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