26 de outubro de 2010

Há Conversa

Nota: Falas de Camilo Gorjão retiradas de A Tragédia da Rua das Flores de Eça de Queiroz.

- Gorjão! Preciso que faças um retrato!
- Ora sebo! Queres talvez o teu retrato, de casaca e gravata branca, com a tua idiota face de janota destacando sobre uma cortina escarlate. És indigno de saber ler! O que pode dar a tua cara? Que expressão? Que ideia?
- De gravata? A gravata é o símbolo da escravatura moderna! Um homem com gravata, é uma ovelha com o guizo ao pescoço! Serve apenas para anunciar a sua chegada. Todos iguais e em rebanho! Com a agravante de que os homens usam o guizo voluntariamente e com orgulho! De qualquer forma, que interessa a roupa, a gravata e a cortina de fundo? Quando se trata de um retrato, tudo o que conta é a face do modelo! A face deve ser retratada de tal modo que ofusque tudo o resto! Tens de ressaltar a sua beleza!
- Nada de saliente, de acentuado, de nítido: tons fundidos, sem relevo, num amaciamento de brancura anémica: que queres tu que faça do teu focinho?
- Não te dizes artista? Cabe-te a ti fazer a obra de arte! Dalí fez arte com relógios derretidos ao sol e Van Gogh só precisou de um simples vaso de girassóis! E a Mona Lisa? Deve a sua imortalidade não à sua beleza, mas ao génio de Da Vinci! O pintor é que faz a obra, não o modelo! Senão, os modelos seriam famosos e não os pintores! Um verdadeiro artista faz de um retrato uma obra de arte!
- Um retrato, de certo, pode ser uma obra de arte: mas é necessário um modelo: pinta-se quem tenha uma alma, uma ideia, uma acção grandiosa: mas pintar um banalão, um burguês… fotografa-te, fotografa-te!
- Bom… de qualquer forma, não é o meu retrato que quero! é o de um anjo! Um anjo de cabelos loiros, olhos verdes e sardas, que entrou levitando na minha vida...
- E então, estás apaixonado, hein?
- Perdidamente.
- É triste, é estúpido.
- A paixão é a maior bênção para o homem inteligente!
- A paixão é a maior desgraça para o homem inteligente. Um artista que se apaixone está perdido: o amor introduz-lhe na vida uma tal quantidade de cuidados, de preocupações, de sensações, que todo o trabalho, todo o pensamento, se torna impossível.
- Pelo contrário! A paixão é o alimento do poeta, do artista! Senão fosse a paixão ainda viveríamos em cavernas! A paixão traz dificuldades, mas foram as grandes tempestades que deram nome aos navegadores e é aos grandes desgostos amorosos que devemos a mais bela arte! Com a paixão vem a inspiração, a virtude, a audácia…
- Vem o ciúme, a exaltação fictícia, a renovação incessante do desejo, a preguiça, a languidez, as subserviências da criatura. O carácter efemina-se, o cérebro amolece, a concepção retrai-se e o que era ontem uma força da sociedade é hoje um chulo de bordel. O artista deve eximir-se ao Amor – como à mais humilhante Tirania.
- Amar uma mulher é viver ao serviço da arte!
- Amar uma mulher é pôr todas as suas forças da vida ao serviço de um só órgão! É como ser glutão: como o glutão não pensa, não vive, não trabalha, não se move – senão para o estômago – o Amante não existe senão para servir, obedecer ao coração – para lhe dar um nome decente.
- Deduzo, então, que nunca amaste…
- Eu dei aos artistas do meu tempo uma grande lição. Suprimi o amor.
Desta porta para dentro nunca entrou uma mulher, isto é, um conjunto de caprichos, de fantasias, de nervos, de sensibilidades, de tiranias, de altercações, de mobilidade.
- Suprimiste, portanto, o sal da vida! Sem fantasias, sensibilidade e altercações de que serve viver? Todo o artista tem de ter uma mulher, ainda que não a possua! É até melhor assim! A mulher ideal para o artista é a mulher que ele não tem e que, assim, permanentemente lhe inquieta o espírito! Não tens nenhuma mulher na tua vida, portanto?
- Tomei uma fêmea. Como fêmea de artista – é completa. É estúpida e é passiva. Come, obedece e despe-se. É um corpo às ordens. Não me importuna, não me interrompe, não me dirige a palavra: está ali. Quando necessito a fêmea, chamo a fêmea.
- Ora, Gorjão… o que dizes não se escreve!


Por João da Ega

22 de outubro de 2010

Ilustração de "The Edimbra music scene"


Tive bastante dificuldade em fazer uma ilustação para o conto do meu amigo Martinho. Tudo o que fiz desagradou-me. Fiz este desenho ontem de manhã despreocupadamente (casualidades da urgência). A ilustração tinha de sair no dia 21 de Outubro como indica o calendário, porém, acabei por não postar no blog mal a terminei, tencionava voltar a dar uns toques à noite mas não dormi em casa.

Esta é a minha desculpa por ter postado um dia depois do agendado. De certa forma, é uma desculpa válida e tem alguma ligação com o conto do meu amigo (dá um final mais feliz à sua história).

O desenho acabou por não levar retoque algum, era minha intenção dar uns pretos com uns marcadores.

Esta é a minha interpretação do conto, não faço ilustrações, é o que consegui fazer deste lado do recreio. Foi uma prazer brincar contigo Martinho, espero que te agrade por aí, no recreio da Escócia.


Por Sérgio Coutinho

19 de outubro de 2010

The Edimbra music scene


Número 1: Falávamos sobre a noite.

      Um festim para os olhos, ou uma nuance de pecado fácil? A cara de Ralph, num dos primeiros dias em Edimbra, pegando no papel que lhe deram em Cowgate com o nome do clube em letras grandes e vermelhas: "Pecado". Ethan nunca conseguiu perceber se Ralph ficou chateado ou enojado com o papel: Ralph não era uma pessoa fácil. Ethan também não era, mas Ralph talvez fosse pior. O exemplo clássico é o ar com que Ralph fala das mulheres, sério e pouco confiante, como se não acreditasse. Porém, era ávido pelo toque, e parecia não negar isso. Ethan sabe que podia aprender muito com Ralph, bastava querer. Mas não queria. E assim o dia continuava grande.
      Os homens seguem as meninas que se armam em mulheres com mais centímetros de sapatos e menos centímetros de saias. Falam sobre muita coisa, provavelmente. Ethan pensa como é que se fala a uma pessoa que nos quer abrir a braguilha. Deve ser a sensação mais desconfortável do mundo. Ethan assusta-se com as mulheres, e tem razões para isso. É, aos vinte e cinco anos de idade e no segundo de doutoramento, um simpático canadiano sem sentido prático. Passa-se tudo numa ideia lógica: conhecer, falar, conhecer mais, falar, e um dia acontece. Sabe que é sempre assim, falar e depois, como que por milagre (Ethan chamou-lhe "a natural inclinação da verdade", numa anotação do seu caderno) esperar a concretização. Há muitos, muitos factores em jogo — e Ethan não é matemático para os considerar. Prefere acordar tarde e ir ao café ler o jornal. Dizem-lhe que isso é coisa de velhos, mas Ethan não se importa, e os outros também não. Ethan tem humor, essencial para a empatia. Só não quer que o chateiem.
      Ela disse-lhe que às onze e meia estaria à porta do Quarto Liquído. A fila vai crescendo: homens com penteados à anos cinquenta, calças justas e sapatos de couro, e meninas de colãs, cabelo à garconette e casacos antigos. Giras, muito giras. Ela disse-lhe às onze e meia e ela é a certinha do doutoramento. Carrega o título desde o mestrado e Ethan não duvida que este deve ser um troféu eterno. A apreensão é legítima, ela nunca chega atrasada a nada, e já se passaram quinze minutos. Para um tipo de horários, como ele, isto é muito, e sabe que para ela também. A fila cresce aos poucos apesar de ser cedo. Como é que se faz, pensa Ethan, como é que se faz isto outra vez? O segurança com uma cobra tatuada no antebraço esquerdo, um desenho muito rasca, aquele tipo que não queremos encontrar num beco escuro às três da manhã. Se calhar tem uma casa e uma família, e aos Domingos à tarde leva os filhos ao jogo do Hibs e vai com a mulher passear por Leith. Será que as pessoas em Leith passeiam? Bolas, gaita, como é que isto se faz? Ethan teme que ele hoje não o deixe entrar. Acha que é sempre hoje que ele o vai barrar. Imagina-o a olhá-lo de alto a baixo, o franzino ruivo que aparenta ser mais novo do que aquilo que é, com camisola verde, calças de gangas e ténis escuros, e a dizer-lhe que não, só porque pode. Depois olha para o relógio: dezoito minutos de atraso.
      Como é que se faz nestas ocasiões? Desiste-se? Porque é que se acredita? Ah, sim, já sei, já me lembro: é preciso. É preciso falarmos com elas, ouvi-las, receber as suas mãos e os seus braços e as suas pernas. E para isso temos de lhes dar o que é nosso. Minutos, horas, uma noite de pândega. Só porque precisamos. Não, também queremos. Queremos tanto. Fosgasse. Onze minutos. Como é que faço? Fico aqui, no meio do frio e até às tantas? Ou entro, sozinho, a pedir para ser barrado, e bazo para casa com o rabo entre as pernas? Ou entro, e atiro-me a alguém? Uma destas pequenas, ainda na licenciatura, de colãs azuis e botas sem salto. É uma boa noite, passam boa música aqui, porque é que não vou aproveitar? E se ela chegar entretanto digo-lhe depois na segunda com calma "Olha, desculpa, tenho pena, mas o que é que querias, que ficasse toda a noite à tua espera?" Mas e se ela chega mesmo agora, tipo daqui a dois minutos? Se calhar teve um acidente. Se calhar arranjou-se para me ver, e atrasou-se. Se calhar está com dúvidas. Se calhar não quer nada. O que é que ir a uma discoteca significa também? Cala-te, significa alguma coisa. Significa sempre. Sempre e sempre, tu-du-du, grande canção. Fosgasse, fosgasse.
      E então aceita-se qualquer coisa e deixa-se estar. Ethan bate o pé, encosta-se à montra da loja, olha para os dois lados, põe a mão nos bolsos, olha para a direita e de repente desencosta-se. Olha outra vez mas nada, nada, não é nada do que quer. É um cabelo loiro, mas não tão grande, não tão caído e brilhante, nada das botas verdes-águas e dos casacos de menina, nada, só uma loira qualquer que sobe Victory Road, velha demais, alta demais, e pronto. E pronto, pensa Ethan, enquanto se encosta outra vez e baixa a cabeça. Devia ir ao Teviot. A malta está de certeza no Teviot. Espero mais um bocado, só mais um bocado. Dez minutos e pronto. Mais do que meia-hora é para borrifar. Como é que dizia o português? "O quarto de hora académico". Palhaço de merda. Fosgasse. Dez minutos e pronto, acabou.
      Ethan olha para a curva de Victory Road, esperando com toda apreensão possível uma chegada.
           
Por Martinho

17 de outubro de 2010

Mister Joe


Há dois anos, aluguei uma casa no norte do Portugal, numa pequena aldeia isolada entre montes.
Um velho senhor barbudo apanhava o sol em frente da sua porta e convidou-me a entrar.
Ele queria falar comigo, mostrar-me coisas.
Temia o que iria encontrar lá dentro mas quis ser amável e bem educada.
Entrei.
A casa estava repleta de milhares de conchas. Tropicais, incríveis, enormes, multicoloridas.
Nas mesas, no chão, nas prateleiras, sobre as cadeiras, no rebordo das janelas, entre livros, dentro de jarras de vidro: conchas.
Na cozinha, no quarto, na sala, usadas como pratos e recipientes, em cima dos armários, no aro das portas, sobre os bancos: conchas.
E nas paredes : velhas fotografias de raparigas polinésias, nuas, molhadas, lindas. Cada uma com uma concha na mão.
Era um antigo mergulhador de conchas, tinha viajado o mundo inteiro, tinhas histórias sem fim, deu-me conchas, mostrou-me as suas preferidas, abriu caixas ainda fechadas cheias de conchas e de pérolas, ofereceu-me a beber, contou-me parte da sua história, disse-me que era sozinho, que já não tinha ninguém, aceitou um cigarro, aceitou que eu lhe tirasse uma fotografia.
Esqueci-me de perguntar o seu nome. Na minha imaginação, chamei-o Mister Joe.

Um ano depois, aluguei novamente a mesma casa. Reparei que a casa dele estava fechada.
Perguntei aos vizinhos.
Ele tinha sido enterrado na véspera da minha chegada.
Perguntei pelas conchas: os seus filhos já tinham esvaziado a casa.
Perguntei como se chamava: o nome dele era João.
Contaram-me a sua história. Podia conta-la aqui no blog mas creio que ele não gostaria. Desencontros, traições, amores perdidos, viagens, regressos, alguma violência e, no  fim, solidão e álcool.  
Veio esquecer a vida nessa aldeia, onde vivia entre as suas conchas e suas recordações de mergulho em águas tropicais.
Tinha tuberculose e morreu sozinho.

Apetece-me acreditar que as conchas que me ofereceu foram apanhadas por ele.
Esta deve ser a sua última fotografia, se não a única.

Por Perrine

14 de outubro de 2010

Estreia inédita: Peça 1



Guião de Sérgio Coutinho. Interpretado por Sérgio e Pedro Lucas.

Guião
A: Temos um momento ideal para conversar.
B: E se eu não quiser falar contigo?
A: Vais querer… Acredita que sim.
B: «Porque terei que ficar só
se aquilo que digo é verdade
Confesso que pretendo encontrar
uma passagem ou falsificar um passaporte
ou falar uma nova linguagem
Ama-me visto que nada acontece»
A: Que dizes?
B: «Não caiu sobre mim uma cruz» de Leonard Cohen
A: Ouvi dizer que fodeste a minha miúda?
B: Bom… não chegou a acontecer nada.
A: Então?
B: Um carro apareceu no estacionamento e ela vomitou. A bem dizer, estávamos podres de bêbedos. Como soubeste?
A: Ela soluçou na cama, fez do meu corpo um bolso onde se escondeu e disse que nunca mais te queria ver.
B: E tu que achas disto?
A: Passei a amá-la mais. «Ninguém suporta um amor que não esteja parcialmente fodido. Tem de haver escombros. Tem de haver esperança, tem de haver progresso para o pior e desejo de regresso a um tempo mais feliz. Um amor só um bocado fodido pode ser a coisa mais bonita deste mundo.» Miguel Esteves Cardoso.
B: Porém, devo confessar-te que lhe cheguei a por a mão dentro das calças, por de trás. Toquei-lhe. Aquilo parecia uma inundação. Ela tem um rabo fantástico!
B: «De súbito, o diabinho que me dançava nos olhos
Mal viu a menina a atravessar a rua,
Saltou num ímpeto de besouro
E despiu-a toda…

E a Que-Sempre-Tanto-Se-Recata
Ficou nua, sonambulamente nua,
Com um seio de ouro
E outro de prata.»
A: José Gomes Ferreira?
B: Sim. Queres um cigarro?
A: Sabes que mais?
B: Diz.
A: É melhor abrires a garrafa de tinto que trouxe.
B: Então?
A: Apetece-me festejar este intervalo, comemorar sei lá o quê. Mais tarde vou querer dançar, vou ter uma febre e convocar-te. Apertaremos as nossas mãos quentes, atarei os meus cabelos aos teus. Por fim, atiraremos copos de vidro da varanda do sétimo andar. Explodirão como um fogo-de-artifício invertido.
B: E depois vais-me bater?
A: Coisa assim.
B: Vou abrir a garrafa.
A: Enquanto fazes isso passa-me o meu telemóvel. Vou mandar uma mensagem.
B: Que vais dizer?
 A: Queres que eu leia o que escrevi?
B: Sim.
A: Há um cais em cada covinha do teu sorriso e os meus olhos vão de um a outro comerciando tentações.
B: É para ela?
A: Não, é para outra.
B: És infiel?
A: Não. São charmes, fugas passageiras, palavras com armadilhas a fingir.
B: A mentira é tão bela não é?
A: E se não a filosofarmos até se pode tornar suportável.
B: Deves ter razão… Acredito que é importante ter sempre algo para recusar. Recusar a realidade dá-te a ideia que és livre: uma criatura capaz de seduzir tudo e todos. É importante ter por companheiro o pensamento desonesto, viver perto das gavetas, dos gatos, dos gestos, das decisões que não tomamos. Mentir sempre, e de preferência com um beijo.
A: Género traição de Judas? Pensava que na amizade não havia mentira.
B: Não. Quer dizer… mentir com paixão é melhor que qualquer outro tipo de mentira.
A: Se continuares assim até sou capaz de te mandar calar.
B: Acho mais bonito se tiveres coragem de dizer que tens sentimentos por mim.
A: Vai à merda.
B: Ah! Mas não digas isso assim, reclama com mentiras bonitas por favor.
B: Odeias-me?
A: Não chego a tanto. Só se o meu ódio criasse uvas e castanhas, que eu rebentaria na tua cara. Abriria janelas pelo teu corpo, pequenos hematomas embrulhados, latidos, carros eléctricos a rasgarem-te com urina e tremores duplos. 
B: Então estás apaixonado por mim?
A: Nem de perto. A minha paixão fermenta talhadas de melancia fresca, vigiadas de perto por moscas horríveis. Alucinações de tempos antigos, fatalmente adjectivadas.
B: Onde estou eu afinal?
A: Tu estás do outro lado, mas sabes comer a melancia.
B: Claro. O que são as moscas?
A: São as palavras.
B: Obviamente. Essas chuvas tropicais!
A: Não. Essas são outras. Repara: «Ao vê-la esconder aquele seu lábio chorão por de trás dos dedos e fugir de uma briga salutar, pensei uma vez mais que os povos bíblicos ao legarem-nos bons preceitos de higiene, foram sábios em muita coisa – mas esqueceram-se de suturar, em devido tempo, o saco lacrimal das mulheres.» É Fernando Namora. As chuvas são sem dúvida as lágrimas femininas.
B: Mas eu gosto que uma rapariga chore… Gosto dessa pequenez, torna-a santa, mais desejável. Apetece conter, guardar, cuidar. É outro tipo de nudez: a lágrima.
A: Sinto que a minha melancolia devia ter um décimo do teu exibicionismo.
B: Porque é que dizes isso?
A: Porque eu sei como tu és, eu sei como amas. Egoísta, vaidoso, espampanante, feliz.
B: Feliz? Só se for porque há muito tempo que adio o choro, ou porque o acho no meu rosto pouco estético. Sou demasiado inútil, demasiado teatral, vim certamente com defeito quando cheguei à vida.
A: Então como explicas a tua existência?
B: Seria para Deus um suicídio político gastar corpos ao desbarato, é por isso que eu não devia estar aqui, sou a prova da incompetência. Sou portanto o resultado de algum suborno pagão, ou de desvio de capitais vaporosos. Um dia posso ser apreendido, aparecer num jornal celeste, ao lado de falsificações de costelas de Adão.
A: E esse engano não te entristece?
B: Enfim, consolo-me sozinho. Às vezes penso que me posso apaixonar. Não tenho nenhum animal de estimação que me anule a carência, portanto finjo que tenho um gato de baixo da mesa… Só depois percebo que as minhas festinhas podem ser mal interpretadas pela empregada.
A: Estás-me a dar razão com as tuas estúpidas deambulações. Não te odeio, não te amo, és coisa enjoativa. Afinal, és um tipo doente ou doloroso?
B: Tenho sempre recém-nascidas dores, todas iguais, todas diferentes. Sempre fui daqueles seres imaturos que guarda o feto no ventre muito para além da gestação. Não me tomes por uma besta. A minha dor é muito feliz no meu corpo, dou-lhe sempre toda a atenção. Devias ver como a mimo, como sou meigo. Que parvoíce… De facto, parece que só fui feito para estragar, fantasiar, e é por isso que até gostava de ser mulher, pela possibilidade de me poder sujar, de ver o mármore a amarelecer deliciosamente.
A: É isso que eu gosto em ti: não vês que toda a tua mariquice é vulgar. Tudo são pretextos para sentires, para criares a ilusão de brilhantismo nessa tua pieguice barata. Vou-te bater à mesma quando o sol nascer. Uns belos murros nessa fronha! Qual exorcismo, qual rodopio da amizade, os teus gritos vão deixar as gaivotas de Lisboa roídas de inveja.

Em qual das mãos está escondida a Primeira República?

(um artigo que escrevi no dia 6 de Outubro, depois das comemorações do centenário da implantação da República. Era para outro espaço mas acabou por ficar na gaveta, decidi que podia ser um bom artigo de opinião)

O jogo de criança que consiste em esconder um objecto numa mão, para outro adivinhar em que mão está, remete-me muito para este jogo de criticar ou louvar a Primeira República. Abre essa mão pirralha, vês como estava nessa mãozinha querida. Nas crianças é mais fácil, têm uma mini-mão e quando o objecto é grande não há muita volta a dar. Conquanto, é sempre importante fingir um certo desafio, pelo menos nas primeiras dez vezes que jogamos; afinal de contas, é preciso entreter a criança, mas também não desejamos que se torne burra ou manipulável. Ora, se as mãos da história são certamente enormes, qual é o tamanho da Primeira República Portuguesa?
Construir um artigo entre comemorações e jogadores profissionais é sempre arriscado. Para já tenho a vantagem de poder ter lido alguns artigos interessantes, aprender umas palavras novas, reunir um arsenal tecnológico e caseiro de defesas, críticas e piropos.
Ainda assim começo com prudência, tenho em consideração que a Primeira Republica é uma adolescente cativante de 16 anos, protegida portanto pela lei, com um pai mais velho de 90 anos (a monarquia constitucional portuguesa), e uma mãe (Portugal) que corre sempre o risco de entrar em depressão pós-parto. A verdade é que houve pouca paciência para a pequena, logo aos 16 anos a tonta ingressou num colégio militar – maldito estigma! E cem anos depois há quem diga que o pai se devia ter mantido solteiro, entusiasmando-se constitucionalmente, ou com pequenos namoros entre regeneradores e progressistas. Tenhamos um pouco de cabecinha, se uma monarquia mais republicana que aquela não existia, chame-se então os bois pelos nomes e democratize-se o sistema monárquico liberal: República.
Mas que diferenças trazia a Primeira República portuguesa? Primeiramente, é preciso ter consciência que a história não se faz apenas das conquistas, mas também dos seus sonhos, das suas paixões, das suas metades, das especificidades de uma época. Neste sentido, a Primeira República redefiniu efectivamente os símbolos da nação, palavras, imagens, ligações, e cimentou o respeito pelo cidadão. Apesar de tudo, o que ganhou pelo seu idealismo e vontade de fazer história, perdeu pela sua teatralidade, exagero, bem como, carência de um projecto económico eficaz, durante um período histórico convulso a nível mundial.
O desejo de modernizar o país é porém estimável, é um accionar da história que motiva a nação permitindo a sua existência. Contudo, se esta acção suportar o seu peso sobre uma base insípida, servirá apenas para renovar optimismos e confianças, que terminarão certamente em desilusão.
A mudança de regime não é por si só suficiente para activar a história, nem a sua legitimidade se pode defender apontando erros do regime anterior, deve sim elevar-se através das suas próprias vitórias. Pergunto novamente: qual é o tamanho dessa República? Relembro (servindo-me da História da Arte, que é o meu meio de investigação) o panfleto de Almada de Negreiros sobre a exposição de Amadeo de Souza-Cardoso (1916): esta era superior à descoberta do caminho marítimo para a Índia e «a primeira descoberta de Portugal na Europa do século XX»; também ela uma modernização da alma lusa. Apesar de tudo, a exposição foi um insucesso, era pois hábito cuspir em telas modernistas e o artista seria apenas recuperado na história muitos anos mais tarde. Amadeo morreria novíssimo, em 1918, e ficava por ali a década com o saldo miúdo mais positivo na criação portuguesa da época. Qual então o saldo da Primeira República portuguesa?
Fernando Pessoa em «Como organizar Portugal» (1919) explicava: «Os homens do nosso tempo, destituídos por completo do senso das realidades, extraviados, por hipotéticos “direitos”, “justiças” e “liberdades”, da noção científica das coisas, não logram, nem mesmo em teoria, visionar a construção da prática. Um século, ou mais, de “princípios de 89”, um século, ou mais, de “liberdade, igualdade, fraternidade” tornou o geral dos europeus, salvo os alemães, obtuso para aquelas noções concretas, com as quais seguramente se constrói o futuro». Claro que seguindo um tom futurista, Pessoa assume que o segredo da organização de uma sociedade progressista é entrar em guerra, e que numa sociedade provinciana (como a portuguesa) a solução está na máquina e educação.
Realmente, festejar a Primeira República portuguesa é festejar o romantismo. A importância de «89» é hoje mais da queda do Muro de Berlim (1989) e não da Revolução Francesa (1789), que obviamente instaurou os princípios democráticos, uma forma de educar e pensar específicas, determinantes na história da humanidade. Não obstante, a Alemanha dá-nos hoje uma outra lição de «89»: a lição da prática. Vinte anos depois da reunificação, a Alemanha é o país mais influente em termos políticos e económicos da zona euro, impulsionando novas regras de jogo mais pragmáticas.
Numa pacífica União Europeia que deixou de ser romântica depois do Holocausto, que é no fundo a raiz da sua identidade, a resposta ao tempo é excessivamente alemã, mas necessária. Ainda bem que não existem alternativas viáveis à República, pois seria uma tentação deliciosa para os mais românticos.
Desta forma, o futuro de Portugal consiste numa identificação honesta com os valores da União Europeia, e com um tipo de democracia que se coadune com o cidadão contemporâneo, global, imagético e interactivo. A dúvida mais imediata é a seguinte: Em qual das mãos está o futuro da democracia europeia: na esquerda ou na direita?


Por Sérgio Coutinho

10 de outubro de 2010

O gigante e o barco


Estas são duas peças que eu, o meu irmão e minhas primas fizemos em brincadeiras de verão deste ano com o pequeno primo Martim. Decidi colocar por aqui as fotografias para ver se me convenço a ir uma vez por mês à praia para brincar com baldes e pás na areia.
Realmente fiquei fascinado com o desenho que ele fez sobre esse dia. Na parte de trás da folha assinou, colocou a data e escolheu como título: «O gigante e o barco».


Por Sérgio e Martim

7 de outubro de 2010

A milha real

À minha frente
por detrás duma janela
sentada numa cadeira com as pernas cruzadas
como se não fosse nada
"O dia está bom, o lugar é simpático
é uma cidade bonita
estou contente"
todas as tiradas habituais.
À minha frente.
Por acaso passei por aqui
normalmente dobro a esquina em baixo
hoje subi a direito, apetecia-me variar
e deparo-me com um festim de fraqueza e arrogância
como só na minha própria maldade pude um dia imaginar.
À minha frente e sem palavras
a cara séria apanhada pelos meus olhos pouco abertos, sonolentos
afinal de contas ainda é de manhã.
Tinha saído como se nascesse, faço sempre isso
o dia como um mundo condensado num aparato de imagens e sons e choques.
O que vem é difícil, tanto que não se pensa nem se espera
o vento ao abrir a porta
a fila para o almoço
os turistas no palácio
as nuvens no céu
imprevisível é uma palavra muito grande
e quem tenta ao menos aguenta viver no seu próprio tamanho.
À minha frente, capturada neste truque diário.
Não sei o que poderás dizer.
Talvez soluces qualquer coisa, um murmúrio, um pequeno sopro
não acredito que te levantes ou que me acenes
talvez até me acenes
enquanto eu fico parado do outro lado do vidro
mãos para baixo, cabeça um pouco inclinada para a frente
mochila às costas.
Não devia ter parado, mas não conseguia desviar o olhar.
A questão de estar atento.
Ali, no centro da minha distância, tu
num restaurante italiano de segunda ou terceira categoria
sentada
com uma lata descomunal.
Porque não?
E porque não avisar?
Custa tanto ser para os outros
abrir a boca e chatearmo-nos para ser forçosamente simpáticos
aguentar e ultrapassar
enfim
não sei o que dizer.
À minha frente
uma menina com idade de mulher apanhada em flagrante
crime de descaramento feroz, de esquecimento forçoso
de cobardia inelutável.
Tudo porque não disse, não quis dizer
"Olá
estou por cá
queres ir tomar um café?"
Se eu consigo tu também consegues
para que se avance e se construa um jardim nos destroços duma casa.
Deus sabe o quanto me irrita por vezes avançar
mas ao menos um dia à tua frente evitarei esta catástrofe
e nunca serei desarmado de maneira tão feroz.
E nem o ridículo dos meus dias
uma desgraça em três actos definitivos
chega a soar tão brutal.


Por Martinho

5 de outubro de 2010

1º Bicho


Com o alfabeto da vida na terra, escreve-se um mundo animal imaginário e infinito.
Medusa terrestre (casca externa da fruta do Brachychiton, espinhos estruturais da fruta do magnólia, tinta).

Por Perrine

3 de outubro de 2010

Capa nº1


Por Ruben Constanço

Calendário de Outubro

Dia 3 (Domingo) - Inauguração
Dia 3 (Domingo) - Capa nº 1

Dia 5 (Terça) - Escultura por Perrine

Dia 7 (Quinta) - Poema por Martinho

Dia 10 (Domingo) - Escultura por Sérgio

Dia 12 (Terça) - Fotografia por Ruben

Dia 14 (Quinta) - Teatro por Sérgio e Pedro Lucas
Dia 14 (Quinta) - Opinião por Sérgio (entrada de ultima hora)

Dia 17 (Domingo) - Fotografia por Perrine

Dia 19 (Terça) - Crónica de Martinho

Dia 21 (Quinta) - Ilustração da Crónica por Sérgio

Dia 23 (Domingo) - BD por Sérgio e Pedro Lopes

Dia 26 (Terça) - "Há conversa" por João da Ega

Dia 28 (Quinta) - Opinião em video por Pedro Lucas

Mês de estreia: Outubro

Bom... Apenas por minha falha devia estrear no dia 1. Estreamos dia 3.

O que contamos para este mês? 12 participações que sinceramente não sou o mais indicado para as definir, talvez no segundo mês cada participação esteja exemplarmente classificada (para no mês seguinte necessitar de uma nova descrição).

Assim contamos:

- Capa: cada mês uma diferente feita por um convidado. A primeira é realizada por Ruben Constanço;

- Crónica: Um conto por Martinho Lucas Pires;

- Esculturas (2 participações): por Perrine, uma peça pintada construída através de achados na natureza, e Sérgio na areia da praia;

- Fotografia (2 participações): por Perrine e Ruben;

- Ilustração: do conto de Martinho por Sérgio Coutinho;

- Opinião: Pedro Lucas em video fala sobre música;

-Literatura: Um diálogo entre João da Ega e personagens literárias de renome.
- Poesia: do grande Martinho;

- Teatro: uma experiência apenas sonora, peça por Sérgio, interpretação deste mês por Pedro Lucas e Sérgio Coutinho;

- Banda desenha: um tira cómica por Sérgio e Pedro Lopes.

O que é o Recreio Inédito?

-É um espaço de reunião onde os convidados são incitados a brincar.

-A maioria liberta-se da sua zona de conforto criativo, experimenta novos meios. Outros, em meios que possuem um forte grau de parentesco, experimentam novos conceitos.

-O grupo tende a ser fixo e as suas participações definirão o seu carácter. As suas actividades são apresentadas mensalmente, sendo que o calendário avisa a estreia de cada projecto.

-É um espaço para semi-adultos, bichos, semi-crianças. Uma obrigação para brincar.