Vou escrever uma coisa que nunca tinha escrito antes. Não sei se me sinto confortável com o facto. É difícil. Um dia acordamos e somos tomados pela evidência. A evidência quando acontece é muito forte. Para além de forte, a evidência é difícil O que é que não é difícil nos dias de hoje? Não é desculpa. Vou escrever e pronto. Isto não é nada mais do que uma folha e o que tenho é uma caneta de tinta preta. A tinta azul arrepia-me. É estranho sentir-me arrepiado por uma cor, mas não tenho de ser uma pessoa normal que não se arrepia com nada. Um tom tem força para destruir um osso. As pessoas não percebem. Ou melhor, algumas pessoas não percebem. Digo sempre isto. Vou escrever e pronto, não posso adiar mais. Porque acordo todos os dias com essa evidência e sei que se continuar a desprezá-la vou acabar por dar em doido. Não sou uma pessoa normal, mas também não sou doido. Às vezes as coisas não são só a preto e branco, mas não quero entrar por aí, porque tenho mesmo de escrever isto. Ainda não me sinto confortável. Não é nada fácil, é difícil. Acho que tenho de começar por algum lado, andar à volta da questão, aproximar-me aos poucos. Não posso simplesmente expôr a situação e pronto, já está. Não funciona assim. Não é que acredite que alguém um dia leia isto. Não escrevo para outras pessoas, escrevo só para mim. Só quero que um dia, quando voltar a ler, sinta que fui verdadeiro. Hoje em dia pode-se ser verdadeiro e não se achar verdadeiro. Sonho muito com isso, com construções e montagens. Pessoas que se montam com peças de várias categorias. Deus, qualidade, idade, estatura, estatuto. As peças nunca mais acabam. Os sonhos são estranhos. Porque será que sonhamos?
Estou a empatar. Escrevi um parágrafo e não disse nada.
Isto é mais difícil do que parece.
Vou começar.
Um dia (não interessa quando) estava na paragem de autocarro junto a Clerk Street. O céu tinha algumas nuvens mas fazia sol. Estava sentado na paragem a levar com sol na cara. Sentia-me quente. Abri o casaco. Vi as horas e não era tarde. Não queria que o autocarro chegasse porque estava bem ali, mas depois lembrei-me que tinha de ir ver o mar e que isso era uma decisão inflexível. Tenho uma teoria. Quando pensamos que uma coisa acontece torna-se muito mais difícil que esta aconteça. É uma teoria estúpida que congeminei quando tinha onze anos e não queria ter aulas. Pensava que as professoras tinham furado um pneu a caminho da escola, ou que a canalização ia rebentar e teríamos de evacuar a sala. Nunca aconteceu nada e então percebi que era inútil mudar o mundo. Já não sou assim, mas às vezes ainda penso da mesma maneira. Os truques são eternos. Estava sol e pensava para mim mesmo que o autocarro tinha ficado preso no trânsito ou que tinha havido um acidente nada grave mas terrivelmente chato na estrada, não permitindo a sua passagem. O autocarro apareceu. Sorri.
Alguns truques são eternos e lá fui eu a caminho do mar.
Junto a Leith comecei a pensar. Demorei a começar, ao contrário das outras vezes. Não me apetecia. Queria adormecer ou entreter-me com outra coisa. Pensar era a última coisa que me apetecia fazer. Mas vi um placar com um anúncio de barras de chocolate e lembrei-me da cara dela. Não interessa quem ela é. Eu sei, e é suficiente. Lembrei-me da cara dela com o mesmo chocolate na mão. É uma associação fácil. O chocolate é uma ligação fácil. E pensei para mim mesmo que queria estar com ela. E sentia isso. O pensamento não veio primeiro que o sentir, deu-lhe voz. E então a evidência veio pela primeira vez, de forma ainda tímida mas já presente.
Eu queria estar com ela e não queria ir ao mar.
Saí do autocarro e fui para a paragem do outro lado e voltei para Clerk Street e depois para casa. Todos os dias desde então tenho pelo menos um ataque de evidência. Não paro de sentir nem de pensar. Não voltei a estar com ela.
Eu quero estar com ela.
Não falei disto a ninguém. É algo demasiado novo. Antigamente era mais fácil, bastava uma acção e pronto, acontecia. Isto é estranho, porque fugiu à minha atenção. Sou capaz de me ter comportado de forma estranha à minha pessoa sem me ter dado conta. Se calhar sorri muito, apertei mãos com força, falei alto. Que mais posso ter feito? Ela pode ter percebido. Ela pode saber. Se calhar ela também me quer ver. Não sei. É difícil pensar por outra pessoa. Nunca fui bom nisso.
A senhora Green disse-me hoje que me achava com boa cara, e perguntou-me se tinha voltado a comer. Disse-lhe que sim. Não me lembro de alguma vez lhe ter dito que tinha deixado de comer por uns dias.
Às vezes essas coisas acontecem e eu não me lembro.
Quero tanto estar com ela.
O pior é que quando estive não tive noção do que significava. Acho que ela também não. Foi muito estranho. Talvez tenha sido que me fez ficar assim. Foi estranho, não normal. Ela nua aos meus olhos, e eu nu aos olhos dela. Peles, pêlos, cheiros. É estranho, só isso. É estranho como é que não pareceu embaraçoso. Nenhum de nós teve grande vergonha em estar ali, mas ao mesmo tempo nenhum de nós parecia bem ciente do que se estava a passar. Foi uma noite longa. Demasiado longa. Não me lembro da despedida. Não sei se fui eu que saí ou se foi ela. Acho que fui eu.
Acho sinceramente que fui eu que saí dali.
Ela está em casa da Marge. A Marge parece que ainda está em aulas.
Tenho de ir ter com ela e perguntar-lhe.
Quero estar com ela. Ela e não a Marge. Ela. Só.
Não sei o que é que pode acontecer. É estranho. Uma boa estranheza.
Isso, uma boa estranheza.
Já me sinto melhor. Não mais confortável, só melhor. Não consigo explicar. Não vou tentar explicar. Devia fazer qualquer coisa. Ir a casa da Marge, sim. Bater à porta, três vezes, mínimo. Perguntar quem é ela. E se ela me abrir a porta? Não sei. Não sei se ela saberá. Mas acho que também não. Não sei se ela quer estar comigo mas eu quero estar com ela. Essa é a evidência. O resto não interessa.
Vou ver um filme. E depois vou a casa da Marge.
Tem de ser.
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