A minha Mãe costuma dizer que a calma é uma virtude e que quem espera sempre alcança. A minha Mãe nunca foi muito boa para dar conselhos e sugestões. É demasiado trapalhona. O meu Pai não é nada trapalhão e ri-se muito quando a minha Mãe se atrapalha. A minha Mãe às vezes também se ri dela própria, mas outras vezes esconde a cara. A minha Mãe gosta muito do meu Pai e não quer que ele veja que ela está irritada com as gargalhadas parvas que ele solta na sala de estar. É muito fácil reparar nisso quando acontece mas o meu Pai nunca se apercebeu de que estava a ser um violento atrasado mental. Não quer dizer que o meu Pai não goste da minha Mãe, nada disso. Simplesmente quer dizer que escondem mais um do outro do que aquilo que deviam. A minha Mãe tem muita calma.
Quem me dera ter saído a ela.
É que não tenho tido calma absolutamente nenhuma.
Nicles de calma.
Ontem fui a casa da Marge e toquei à porta e ela não me abriu e disse-me por detrás que eu não era bem-vindo. Não percebi e voltei a bater. Ninguém me respondeu. Como não acontecia nada e não parecia que fosse acontecer nos tempos mais próximos resolvi descer, andar uns quinze minutos e ir ao Doctor’s. Pedi uma cerveja e sentei-me, estava a dar um jogo de rugby senão me engano.
Tenho esta terrível mania de colocar as coisas no seu devido lugar para que não se percam. Sou estupidamente arrumadinho com a minha cabeça.
Não sei a quem saí nisso. Talvez ao meu Avô. Talvez.
A Marge não me deixou entrar em casa.
Não percebo as mulheres. O Tom também não e não tem medo de lhes dizer na cara. Uma vez virou-se para uma loira completamente maquilhada que o roçou enquanto ele fumava em Cowgate e disse-lhe: Não vos percebo. A miúda foi-se embora e chamou-o “maricas”. O Tom riu-se. Passado um bocado pregou uma rasteira a uma outra miúda, morena e pequena, que tinha uns saltos altos enormes, e foi para casa dela. Contou-me como é que tudo tinha sido: como lhe tinha tirado o vestido e como é que ela se fez a ele. Os pormenores eram sórdidos. No final ela disse que nunca mais o quereria ver e que, caso algum dia se cruzassem na rua, ela iria esmurrá-lo. Ele conta que sorriu e saiu sem dizer nada. Passado uma semana estava lá outra vez e ela voltou a repetir tudo no fim, mas desta vez juntou ao murro um valente pontapé nos tomates. O Tom perguntou-me se devia ir a casa dela uma terceira vez. Eu disse-lhe que a partir da terceira era uma rotina. Ele sorriu. Disse que gostava de rotinas. Não sei se ele foi lá ou não, mas é bem provável que sim. O Tom tem tomates a valer.
A senhora Green disse que eu não devia tê-lo como amigo, que era um daqueles tipos que me levaria à ruína. Disse-lhe que exagerava, que era mentira, porque as ruínas são certas para todos e não para alguns. Só quando fechei a porta é que percebi a brutalidade do que tinha acabado de proferir e voltei para trás a correr para lhe pedir desculpa. Ela olhou-me, muito zangada, e disse que eu devia deixar de ver o Tom. Eu pedi-lhe desculpa e disse que desligava a aparelhagem antes de ir dormir. Ela fechou-me a porta. Não desliguei a aparelhagem.
Gostava de ter tomates a valer mas sou demasiado assustado para levar o bem avante.
Ao menos a Marge podia dar-me uma oportunidade. Não lhe fazia mal nenhum.
Acho que ela está com inveja. Sim, inveja. Só pode ser isso.
Tinha dito à Tracy que ela não podia sorrir tanto, porque quem a visse ficaria com uma inveja tremenda e iria começar a odiá-la. Ela deu-me um estalo e sorriu. Disse que estava feliz e que se estava a cagar para o que quer que o mundo achasse da cara dela. Disse-lhe que é uma coisa bonita, o facto de não nos importarmos com o que os outros pensam. Depois ela perguntou-me se eu me importava com o que é que os outros pensavam de mim. Disse-lhe que não, mas também lhe disse que não era uma pessoa bonita. Ela beijou-me e disse que lá em casa todos diziam que eu era um génio que faria alguma coisa importante no futuro, e que de noite faziam-se apostas sobre qual o evento que eu provocaria e que ficaria na história. Ela também me contou que existe um boião por cima do armário da cozinha cheio de notas de cinco libras. As apostas estão todas num papel quadriculado dobrado em quatro, escritas a caneta de feltor cor-de-rosa. Se não fosse pela precisão da declaração eu diria que a Tracy estava a gozar comigo. Ontem, se a Marge me tivesse deixado entrar, ia directo à cozinha ver se era verdade.
Porque é que a Marge não me deixou entrar? Será inveja ou será que fiz alguma coisa de mal?
Não sei, não percebo. Não percebo as mulheres.
Reparei agora que escrevi “morena e pequena”. É uma boa expressão. Ainda me saem destas de vez em quando.
A Tracy não me está a atender o telefone. É nestas alturas que gostava de ter computador e mandar um e-mail directo. Comunicações directas. Fazem-me espécie. Se calhar tenho medo de ser directo. Não. É algo diferente. Não sei explicar. Só sei que ela não me liga meia.
Passaram-se quase quarenta e oito horas e ela não me disse nada.
Nada de nada.
Devo ter feito alguma coisa de mal. De certeza. Mas o quê?
Ela estava bem. Lembro-me da cara dela, estava mesmo bem. Sorria, abria os olhos, mandava piadas. E agarrava-me com força. Tanta força. Estava tudo bem, sim. Tinha de estar, não havia outra hipótese. Então porquê este silêncio? Porquê a raiva da Marge? Alguma coisa aconteceu desde que nos separámos à porta de casa e seguimos os nossos caminhos. Mas o quê?
Gostava de ser detective. A senhora Green disse-me uma vez que foi casada com um detective escocês e que ele morreu enquanto investigava uma suposta infecção de carne picada nos refeitórios das escolas públicas em Dundee. Disse-me que depois disso não comeu carne durante dois anos e ainda hoje recomenda as amigas a porem os filhos em escolas privadas.
Vou ligar à Tracy mais uma vez, a ver se percebo o que se passa. Se ela não me atender fico a ouvir um disco. Acho que é disso que preciso.
por Martinho
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