9 de fevereiro de 2011

"Do bloco de notas de Rudy O’Mark no dia 22 de Janeiro de dois mil e onze" - Martinho

            As lógicas não são prioritátias nem fiáveis: é uma ideia que partilhamos há já alguns anos, eu e os meus amigos, ou melhor, os meus amigos e eu.
É assim que se deve dizer.
Não são regras ou paradigmas, são apenas coisas, momentos, cenas, ou até pormenores, até isso aceito, questões de hábito, cumplicidades próprias que não se podem abrir assim, sem mais nem menos.
            Há dois dias que não como e a televisão só passa merda. A senhora Green acha que estou a passar por uma fase. Perguntei-lhe: Que fase? Disse-me que era o crescimento. Nada mais.
            O crescimento é uma fase?                               
            Ontem à noite a merda era sobre um casal quarentão que descobria que a felicidade dos seus amigos era toda ela uma mentira, e que em vez de serem olhados como mais um casal, simples, pequeno, eram o símbolo ou exemplo duma impossibilidade cósmica: a felicidade. Isso provocava inveja, mal-estar, olhares hipócritas na comunidade. Como disse, era uma merda, mas era uma merda bem feita, porque mexeu-me todo por dentro. Num certo momento o homem teve de perguntar à mulher se ela achava que eles eram normais. Ela não respondeu, mas depois sorriu, e depois respondeu-lhe com a sua mão na dele, e ele acalmou-se, e parou de chorar — esqueci-me de dizer: ele estava a chorar baba e ranho, um homem gordo e careca a chorar baba e ranho. Tocou-me.
            Acho que a felicidade existe. Há coisas que são muito bonitas. Reconhecê-las não é uma questão de disposição. Não sei o quê. Acho parvo que não se queira ser feliz à séria. Também acho parvo querer ser feliz por tudo e por nada. Deve haver um meio termo. De certeza que há um meio termo: é para isso que os meios termos foram feitos, para pessoas que existem mesmo.
            Conheci algumas pessoas assim. Algumas eram simpáticas.
            Não acho que o crescimento seja uma fase, mas sim um momento eterno. A idade é uma fase. Isso sim. Parece-me bem. Cada idade é uma fase. Algumas idades são mais fases do que outras — ou se calhar algumas idades são menos fases do que outras. Não sei. Talvez. Ontem tinha vinte e quatro anos e hoje continuo a ter vinte quatro anos mas sinto-me ligeiramente diferente. Sei lá, é do ar.
            Dizia que havia coisas bonitas no mundo.
            É verdade.
            Uma coisa bonita, para mim pelo menos, é ouvir discos, canções. Chegar a casa, ligar o computador, ligar as colunas e ir à internet. Não tenho música no computador, só na cabeça. Só preciso que uma canção comece e tenho a noite feita.
Ainda assim não como há dois dias.
Acho que preciso de ver filmes. O problema é esse: não tenho visto filmes. Tenho de tratar disso.
            O Mark veio visitar-me hoje de manhã. Disse que se ia casar. Ela é espanhola e estão juntos há cinco anos. O Mark disse que não podia adiar mais. Perguntei-lhe: Então não é uma questão de sim, é uma questão de tempo. Ele riu-se e disse que eu era estranho. Pus uma música a tocar e depois disse-lhe: Gosto deste tipo, canta bem. O Mark não disse nada. Perguntei-lhe: Não achas? Ele continuou sem dizer nada. Quer que eu seja o padrinho dele. O casamento será em Alicante, que pelo que ele me diz é no sul de Espanha. Ele nunca lá esteve. Eu também não. Nunca passei de França para baixo. Gosto demasiado disto para ir de França para baixo.
            Como é que serão as pessoas do sul de Espanha quando estão no Sul de Espanha?
            Tive um amiga espanhola. Viva comigo e com outro espanhol em Helsínquia.
            Acho que ainda me lembro deles.
            Em Agosto vou ter de ir a Alicante, sul de Espanha, para ser padrinho de casamento de Mark Loy, escocês, vinte e sete anos, licenciado em engenharia física, mestrado em fibras energéticas, empregado na Telefónica Britânica, namorado de Maria Canterúbia, espanhola, vinte e seis anos, licenciada em engenharia física, mestrado em fibras energéticas, empregada na Espanha e ligações.
            Parece-me um bom plano. Estará calor em Agosto no sul de Espanha?
            Ela chamava-se Preciosa. Acho que era isso. Ele tinha um nome maior, Juan Carlos ou assim. Bebiam pouco porque não tinham dinheiro. Eu também não tinha mas bebia muito, embora não fosse tanto como os finlandeses. Não comprei discos nem vi filmes nesse tempo.
            Era uma fase.
            Uma fase da idade.
            Para além disto não sei muita coisa sobre Espanha.
            Tenho de comprar um guia. Inscrever-me em aulas de espanhol. Conseguir dizer algumas frases, sérias e profundas, mas nada de complexo. Não tenho tempo para isso. Podia praticar com a senhora Green. A senhora Green contou-me uma vez que o seu terceiro marido era Venezuelano. Tinham uma casa bonita em Caracas, com varanda e tudo, e que o Verão deles era no nosso Inverno e que durante o casamento foram ambos felizes e quentes.
            Acho que a senhora Green me mente para ser feliz, mas não me importo e sorrio, passando com o saco das compras.
            Apetece-me comer.
            Não como há dois dias e não percebi ainda bem porquê.
            Às vezes acontece-me uma coisa estranha: quando leio livros ou vejo filmes ou vejo quadros (com a música, curiosamente, isso não me acontece), devido a algum espasmo criativo ou assim — expressão caricata número cento e trinta e dois: “espasmo criativo” — achar que estou doente. Há uma doença que é assim, com nome e tudo, um síndrome qualquer. É estranho: pessoas doentes por acharem que estão doentes. Uma lógica marada. Nada que não se saiba. Essas pessoas são loucas. Fazem-me vontade de rir. Eu não sou louco, só não tenho tido fome.
            Os dias vão passando bem. Se calhar consegue-se viver sem fome.
            Se calhar não. Apetece-me comer.
            Será só apetite, fome ou gula?
            O Mark trouxe-me um livro. Acho que era uma maneira de me obrigar a dar-lhe uma prenda, como padrinho de casamento que sou. O Mark conhece-me bem, demasiado bem para me dar um livro sem mais nem menos. Sabemos ambos o que isso significa. É um bom amigo, o Mark. Tem pinta, estilo, gota. O que é que isso quer dizer, gota? Não sei. Mas é uma coisa boa, um elogio, uma característica interessante.
            As pessoas esquecem-se de que nos conhecemos uns aos outros melhor do que elas nos conhecem.
            Gosto de música celta. Anima-me, relaxa-me. Piadas, humores.
            Tenho fome.
            A Maria gosta de barcos. Vou oferecer-lhes um barco em miniatura e escrever o nome deles na proa. É uma coisa bonita. Um barco branco com uma risca azul e o nome dos dois na proa. Assim não o largam. Nunca mais.
            Gosto desta banda. Estou feliz.
            Tenho fome. Acho que vou ao supermercado comprar qualquer coisa.
            Amanhã vai acontecer não sei o quê mas vai. Podemos confiar nisso.

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