Peça escrita por Sérgio Coutinho. Interpretada por Sérgio e João da Ega.
A:
Não governo o terror – é anarquia.
Nada me pertence – sou fantasma branco.
Tanto que eu queria
Uma boquinha vermelha, um descanso.
B:
Eu vou ao café
Persisto na inteligência de uma pose estudada.
Eu vou ao bar
E faço pose para um estudo da inteligência.
Bebo três copos de conhaque:
Podia ser uma planta,
Em vez de raízes teria calças e sapatos,
E colado às mobílias, sonharia nos violetas e carmins dos troncos das árvores,
Ou nas direcções dos vestidos transparentes da chuva.
A:
Tu nunca conseguiste ficar muito tempo em casa.
B:
Tu nunca conseguiste ficar muito tempo no corpo.
A:
É insuportável acordar contigo. Ouvir-te repetir essa lengalenga insensível:
“Desejo acordar vazio de mim,
Vazio de coisas e apegos,
Não acordar em tumultuosos sossegos,
Por ser demo e querubim.”
És uma merda. Juro.
Não imaginas a minha paciência.
Porque é que foste comer um gelado em vez de religião?
Esqueceste-te?
Se não comeres até acabarem o prazo, não há mais gelado!
B:
Calma.
Vamos sossegar um pouco,
Travar o teu alcance
Verruga.
Finges que eu sou comediante, despretensioso, com falhas na representação.
Olha primeiro para ti.
És um espírito, mas muito pobre de espírito.
As tuas palavras parecem rastas
E nem és pedaço terra.
Tem mas é juízo e ficas a saber que não te autorizo a comparecer nas minhas conquistas –
Só porque tens falta de imaginação.
Os pensamentos são meus e as liberdades são gargalhadas.
As minhas gargalhadas.
A:
Tu não és nada se eu não te convidar.
B:
Escrevo para me separar de ti.
Escrevo para pedir amizade às coisas.
A:
És um maricas.
B:
E tu não te podes conjugar com o verbo ser.
Não és primo de ninguém,
Não tens cor favorita.
A:
Porque é que voltaste para o bar?
B:
Peço um café. Desejava uma cerveja.
A minha roupa ainda está empestada pelos cigarros dos bares matinais.
Mas abro um botão da camisa e escolho a casa da Maria.
A:
Mentiroso.
B:
Maria junto à porta cruza os braços, e eu sigo os gestos do meu catálogo.
Creio que me desculpas os cansaços, os lábios de tinto, o betão dos passos
Ou das lágrimas…
Penduras nos meus caracóis enfeites de natal, alisas a minha barba,
Como as palhinhas para o menino na nossa mansarda.
E depois guardas-me na tua mala-mulher,
Nos teus dedos, nas covinhas dos teus ombros
Levas-me. Lavas-me. Levas-me. Love-as-me.
Maria, junta-me, afasta-me dos assombros.
A:
Porque além de mentiroso és foleiro.
B:
Cala-te.
A:
Eu estava lá – não foi nada assim.
Não voltaste para casa, ficaste sozinho no bar.
Sob o teu ninho de feridas – esse corpo.
E pela tua boca – onde o bocal da cerveja dispunha o seu anzol.
Juraste ter ouvido os pés da mesa a queixarem-se sobre a tua mudança de perspectiva.
Estavas de pé atrás quanto a ficar mais um pouco.
Vou para casa – repetias.
B:
Vou para casa.
A:
Mas não ias.
Ao pé da garrafa cheia, num punhado de beijos por dar,
E já metendo os pés pelas mãos,
Atiraste-te àquela que seria a última…
B:
Prometo: a última cerveja da noite.
A:
Adiando para amanha o resto do pedido de casamento entre os pés da mesa e os teus pés.
B:
Prometo, queridas.
A:
Os teus pés – os das tuas pernas – não acreditando na autoridade do “eu”,
Que já lhes prometera os pés da Maria,
Puseram de pé uma revolta.
Recusaram-se então a voltar para os pés da cama,
E do pé para a mão,
Estatelaram-se redondos à saída,
Voláteis como sonhos contrafeitos.
B:
Foi assim?
A:
Assim foi… Sem te opores, pé ante pé,
Adormeceste semi-estatelado sem porvir,
Na calçada que sem encalços enfria.
E os teus pés descalços a curtir,
Esperavam sós, os da Maria.
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