19 de outubro de 2010

The Edimbra music scene


Número 1: Falávamos sobre a noite.

      Um festim para os olhos, ou uma nuance de pecado fácil? A cara de Ralph, num dos primeiros dias em Edimbra, pegando no papel que lhe deram em Cowgate com o nome do clube em letras grandes e vermelhas: "Pecado". Ethan nunca conseguiu perceber se Ralph ficou chateado ou enojado com o papel: Ralph não era uma pessoa fácil. Ethan também não era, mas Ralph talvez fosse pior. O exemplo clássico é o ar com que Ralph fala das mulheres, sério e pouco confiante, como se não acreditasse. Porém, era ávido pelo toque, e parecia não negar isso. Ethan sabe que podia aprender muito com Ralph, bastava querer. Mas não queria. E assim o dia continuava grande.
      Os homens seguem as meninas que se armam em mulheres com mais centímetros de sapatos e menos centímetros de saias. Falam sobre muita coisa, provavelmente. Ethan pensa como é que se fala a uma pessoa que nos quer abrir a braguilha. Deve ser a sensação mais desconfortável do mundo. Ethan assusta-se com as mulheres, e tem razões para isso. É, aos vinte e cinco anos de idade e no segundo de doutoramento, um simpático canadiano sem sentido prático. Passa-se tudo numa ideia lógica: conhecer, falar, conhecer mais, falar, e um dia acontece. Sabe que é sempre assim, falar e depois, como que por milagre (Ethan chamou-lhe "a natural inclinação da verdade", numa anotação do seu caderno) esperar a concretização. Há muitos, muitos factores em jogo — e Ethan não é matemático para os considerar. Prefere acordar tarde e ir ao café ler o jornal. Dizem-lhe que isso é coisa de velhos, mas Ethan não se importa, e os outros também não. Ethan tem humor, essencial para a empatia. Só não quer que o chateiem.
      Ela disse-lhe que às onze e meia estaria à porta do Quarto Liquído. A fila vai crescendo: homens com penteados à anos cinquenta, calças justas e sapatos de couro, e meninas de colãs, cabelo à garconette e casacos antigos. Giras, muito giras. Ela disse-lhe às onze e meia e ela é a certinha do doutoramento. Carrega o título desde o mestrado e Ethan não duvida que este deve ser um troféu eterno. A apreensão é legítima, ela nunca chega atrasada a nada, e já se passaram quinze minutos. Para um tipo de horários, como ele, isto é muito, e sabe que para ela também. A fila cresce aos poucos apesar de ser cedo. Como é que se faz, pensa Ethan, como é que se faz isto outra vez? O segurança com uma cobra tatuada no antebraço esquerdo, um desenho muito rasca, aquele tipo que não queremos encontrar num beco escuro às três da manhã. Se calhar tem uma casa e uma família, e aos Domingos à tarde leva os filhos ao jogo do Hibs e vai com a mulher passear por Leith. Será que as pessoas em Leith passeiam? Bolas, gaita, como é que isto se faz? Ethan teme que ele hoje não o deixe entrar. Acha que é sempre hoje que ele o vai barrar. Imagina-o a olhá-lo de alto a baixo, o franzino ruivo que aparenta ser mais novo do que aquilo que é, com camisola verde, calças de gangas e ténis escuros, e a dizer-lhe que não, só porque pode. Depois olha para o relógio: dezoito minutos de atraso.
      Como é que se faz nestas ocasiões? Desiste-se? Porque é que se acredita? Ah, sim, já sei, já me lembro: é preciso. É preciso falarmos com elas, ouvi-las, receber as suas mãos e os seus braços e as suas pernas. E para isso temos de lhes dar o que é nosso. Minutos, horas, uma noite de pândega. Só porque precisamos. Não, também queremos. Queremos tanto. Fosgasse. Onze minutos. Como é que faço? Fico aqui, no meio do frio e até às tantas? Ou entro, sozinho, a pedir para ser barrado, e bazo para casa com o rabo entre as pernas? Ou entro, e atiro-me a alguém? Uma destas pequenas, ainda na licenciatura, de colãs azuis e botas sem salto. É uma boa noite, passam boa música aqui, porque é que não vou aproveitar? E se ela chegar entretanto digo-lhe depois na segunda com calma "Olha, desculpa, tenho pena, mas o que é que querias, que ficasse toda a noite à tua espera?" Mas e se ela chega mesmo agora, tipo daqui a dois minutos? Se calhar teve um acidente. Se calhar arranjou-se para me ver, e atrasou-se. Se calhar está com dúvidas. Se calhar não quer nada. O que é que ir a uma discoteca significa também? Cala-te, significa alguma coisa. Significa sempre. Sempre e sempre, tu-du-du, grande canção. Fosgasse, fosgasse.
      E então aceita-se qualquer coisa e deixa-se estar. Ethan bate o pé, encosta-se à montra da loja, olha para os dois lados, põe a mão nos bolsos, olha para a direita e de repente desencosta-se. Olha outra vez mas nada, nada, não é nada do que quer. É um cabelo loiro, mas não tão grande, não tão caído e brilhante, nada das botas verdes-águas e dos casacos de menina, nada, só uma loira qualquer que sobe Victory Road, velha demais, alta demais, e pronto. E pronto, pensa Ethan, enquanto se encosta outra vez e baixa a cabeça. Devia ir ao Teviot. A malta está de certeza no Teviot. Espero mais um bocado, só mais um bocado. Dez minutos e pronto. Mais do que meia-hora é para borrifar. Como é que dizia o português? "O quarto de hora académico". Palhaço de merda. Fosgasse. Dez minutos e pronto, acabou.
      Ethan olha para a curva de Victory Road, esperando com toda apreensão possível uma chegada.
           
Por Martinho

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