7 de outubro de 2010

A milha real

À minha frente
por detrás duma janela
sentada numa cadeira com as pernas cruzadas
como se não fosse nada
"O dia está bom, o lugar é simpático
é uma cidade bonita
estou contente"
todas as tiradas habituais.
À minha frente.
Por acaso passei por aqui
normalmente dobro a esquina em baixo
hoje subi a direito, apetecia-me variar
e deparo-me com um festim de fraqueza e arrogância
como só na minha própria maldade pude um dia imaginar.
À minha frente e sem palavras
a cara séria apanhada pelos meus olhos pouco abertos, sonolentos
afinal de contas ainda é de manhã.
Tinha saído como se nascesse, faço sempre isso
o dia como um mundo condensado num aparato de imagens e sons e choques.
O que vem é difícil, tanto que não se pensa nem se espera
o vento ao abrir a porta
a fila para o almoço
os turistas no palácio
as nuvens no céu
imprevisível é uma palavra muito grande
e quem tenta ao menos aguenta viver no seu próprio tamanho.
À minha frente, capturada neste truque diário.
Não sei o que poderás dizer.
Talvez soluces qualquer coisa, um murmúrio, um pequeno sopro
não acredito que te levantes ou que me acenes
talvez até me acenes
enquanto eu fico parado do outro lado do vidro
mãos para baixo, cabeça um pouco inclinada para a frente
mochila às costas.
Não devia ter parado, mas não conseguia desviar o olhar.
A questão de estar atento.
Ali, no centro da minha distância, tu
num restaurante italiano de segunda ou terceira categoria
sentada
com uma lata descomunal.
Porque não?
E porque não avisar?
Custa tanto ser para os outros
abrir a boca e chatearmo-nos para ser forçosamente simpáticos
aguentar e ultrapassar
enfim
não sei o que dizer.
À minha frente
uma menina com idade de mulher apanhada em flagrante
crime de descaramento feroz, de esquecimento forçoso
de cobardia inelutável.
Tudo porque não disse, não quis dizer
"Olá
estou por cá
queres ir tomar um café?"
Se eu consigo tu também consegues
para que se avance e se construa um jardim nos destroços duma casa.
Deus sabe o quanto me irrita por vezes avançar
mas ao menos um dia à tua frente evitarei esta catástrofe
e nunca serei desarmado de maneira tão feroz.
E nem o ridículo dos meus dias
uma desgraça em três actos definitivos
chega a soar tão brutal.


Por Martinho

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