26 de outubro de 2010

Há Conversa

Nota: Falas de Camilo Gorjão retiradas de A Tragédia da Rua das Flores de Eça de Queiroz.

- Gorjão! Preciso que faças um retrato!
- Ora sebo! Queres talvez o teu retrato, de casaca e gravata branca, com a tua idiota face de janota destacando sobre uma cortina escarlate. És indigno de saber ler! O que pode dar a tua cara? Que expressão? Que ideia?
- De gravata? A gravata é o símbolo da escravatura moderna! Um homem com gravata, é uma ovelha com o guizo ao pescoço! Serve apenas para anunciar a sua chegada. Todos iguais e em rebanho! Com a agravante de que os homens usam o guizo voluntariamente e com orgulho! De qualquer forma, que interessa a roupa, a gravata e a cortina de fundo? Quando se trata de um retrato, tudo o que conta é a face do modelo! A face deve ser retratada de tal modo que ofusque tudo o resto! Tens de ressaltar a sua beleza!
- Nada de saliente, de acentuado, de nítido: tons fundidos, sem relevo, num amaciamento de brancura anémica: que queres tu que faça do teu focinho?
- Não te dizes artista? Cabe-te a ti fazer a obra de arte! Dalí fez arte com relógios derretidos ao sol e Van Gogh só precisou de um simples vaso de girassóis! E a Mona Lisa? Deve a sua imortalidade não à sua beleza, mas ao génio de Da Vinci! O pintor é que faz a obra, não o modelo! Senão, os modelos seriam famosos e não os pintores! Um verdadeiro artista faz de um retrato uma obra de arte!
- Um retrato, de certo, pode ser uma obra de arte: mas é necessário um modelo: pinta-se quem tenha uma alma, uma ideia, uma acção grandiosa: mas pintar um banalão, um burguês… fotografa-te, fotografa-te!
- Bom… de qualquer forma, não é o meu retrato que quero! é o de um anjo! Um anjo de cabelos loiros, olhos verdes e sardas, que entrou levitando na minha vida...
- E então, estás apaixonado, hein?
- Perdidamente.
- É triste, é estúpido.
- A paixão é a maior bênção para o homem inteligente!
- A paixão é a maior desgraça para o homem inteligente. Um artista que se apaixone está perdido: o amor introduz-lhe na vida uma tal quantidade de cuidados, de preocupações, de sensações, que todo o trabalho, todo o pensamento, se torna impossível.
- Pelo contrário! A paixão é o alimento do poeta, do artista! Senão fosse a paixão ainda viveríamos em cavernas! A paixão traz dificuldades, mas foram as grandes tempestades que deram nome aos navegadores e é aos grandes desgostos amorosos que devemos a mais bela arte! Com a paixão vem a inspiração, a virtude, a audácia…
- Vem o ciúme, a exaltação fictícia, a renovação incessante do desejo, a preguiça, a languidez, as subserviências da criatura. O carácter efemina-se, o cérebro amolece, a concepção retrai-se e o que era ontem uma força da sociedade é hoje um chulo de bordel. O artista deve eximir-se ao Amor – como à mais humilhante Tirania.
- Amar uma mulher é viver ao serviço da arte!
- Amar uma mulher é pôr todas as suas forças da vida ao serviço de um só órgão! É como ser glutão: como o glutão não pensa, não vive, não trabalha, não se move – senão para o estômago – o Amante não existe senão para servir, obedecer ao coração – para lhe dar um nome decente.
- Deduzo, então, que nunca amaste…
- Eu dei aos artistas do meu tempo uma grande lição. Suprimi o amor.
Desta porta para dentro nunca entrou uma mulher, isto é, um conjunto de caprichos, de fantasias, de nervos, de sensibilidades, de tiranias, de altercações, de mobilidade.
- Suprimiste, portanto, o sal da vida! Sem fantasias, sensibilidade e altercações de que serve viver? Todo o artista tem de ter uma mulher, ainda que não a possua! É até melhor assim! A mulher ideal para o artista é a mulher que ele não tem e que, assim, permanentemente lhe inquieta o espírito! Não tens nenhuma mulher na tua vida, portanto?
- Tomei uma fêmea. Como fêmea de artista – é completa. É estúpida e é passiva. Come, obedece e despe-se. É um corpo às ordens. Não me importuna, não me interrompe, não me dirige a palavra: está ali. Quando necessito a fêmea, chamo a fêmea.
- Ora, Gorjão… o que dizes não se escreve!


Por João da Ega

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