O jogo de criança que consiste em esconder um objecto numa mão, para outro adivinhar em que mão está, remete-me muito para este jogo de criticar ou louvar a Primeira República. Abre essa mão pirralha, vês como estava nessa mãozinha querida. Nas crianças é mais fácil, têm uma mini-mão e quando o objecto é grande não há muita volta a dar. Conquanto, é sempre importante fingir um certo desafio, pelo menos nas primeiras dez vezes que jogamos; afinal de contas, é preciso entreter a criança, mas também não desejamos que se torne burra ou manipulável. Ora, se as mãos da história são certamente enormes, qual é o tamanho da Primeira República Portuguesa?
Construir um artigo entre comemorações e jogadores profissionais é sempre arriscado. Para já tenho a vantagem de poder ter lido alguns artigos interessantes, aprender umas palavras novas, reunir um arsenal tecnológico e caseiro de defesas, críticas e piropos.
Ainda assim começo com prudência, tenho em consideração que a Primeira Republica é uma adolescente cativante de 16 anos, protegida portanto pela lei, com um pai mais velho de 90 anos (a monarquia constitucional portuguesa), e uma mãe (Portugal) que corre sempre o risco de entrar em depressão pós-parto. A verdade é que houve pouca paciência para a pequena, logo aos 16 anos a tonta ingressou num colégio militar – maldito estigma! E cem anos depois há quem diga que o pai se devia ter mantido solteiro, entusiasmando-se constitucionalmente, ou com pequenos namoros entre regeneradores e progressistas. Tenhamos um pouco de cabecinha, se uma monarquia mais republicana que aquela não existia, chame-se então os bois pelos nomes e democratize-se o sistema monárquico liberal: República.
Mas que diferenças trazia a Primeira República portuguesa? Primeiramente, é preciso ter consciência que a história não se faz apenas das conquistas, mas também dos seus sonhos, das suas paixões, das suas metades, das especificidades de uma época. Neste sentido, a Primeira República redefiniu efectivamente os símbolos da nação, palavras, imagens, ligações, e cimentou o respeito pelo cidadão. Apesar de tudo, o que ganhou pelo seu idealismo e vontade de fazer história, perdeu pela sua teatralidade, exagero, bem como, carência de um projecto económico eficaz, durante um período histórico convulso a nível mundial.
O desejo de modernizar o país é porém estimável, é um accionar da história que motiva a nação permitindo a sua existência. Contudo, se esta acção suportar o seu peso sobre uma base insípida, servirá apenas para renovar optimismos e confianças, que terminarão certamente em desilusão.
A mudança de regime não é por si só suficiente para activar a história, nem a sua legitimidade se pode defender apontando erros do regime anterior, deve sim elevar-se através das suas próprias vitórias. Pergunto novamente: qual é o tamanho dessa República? Relembro (servindo-me da História da Arte, que é o meu meio de investigação) o panfleto de Almada de Negreiros sobre a exposição de Amadeo de Souza-Cardoso (1916): esta era superior à descoberta do caminho marítimo para a Índia e «a primeira descoberta de Portugal na Europa do século XX»; também ela uma modernização da alma lusa. Apesar de tudo, a exposição foi um insucesso, era pois hábito cuspir em telas modernistas e o artista seria apenas recuperado na história muitos anos mais tarde. Amadeo morreria novíssimo, em 1918, e ficava por ali a década com o saldo miúdo mais positivo na criação portuguesa da época. Qual então o saldo da Primeira República portuguesa?
Fernando Pessoa em «Como organizar Portugal» (1919) explicava: «Os homens do nosso tempo, destituídos por completo do senso das realidades, extraviados, por hipotéticos “direitos”, “justiças” e “liberdades”, da noção científica das coisas, não logram, nem mesmo em teoria, visionar a construção da prática. Um século, ou mais, de “princípios de 89”, um século, ou mais, de “liberdade, igualdade, fraternidade” tornou o geral dos europeus, salvo os alemães, obtuso para aquelas noções concretas, com as quais seguramente se constrói o futuro». Claro que seguindo um tom futurista, Pessoa assume que o segredo da organização de uma sociedade progressista é entrar em guerra, e que numa sociedade provinciana (como a portuguesa) a solução está na máquina e educação.
Realmente, festejar a Primeira República portuguesa é festejar o romantismo. A importância de «89» é hoje mais da queda do Muro de Berlim (1989) e não da Revolução Francesa (1789), que obviamente instaurou os princípios democráticos, uma forma de educar e pensar específicas, determinantes na história da humanidade. Não obstante, a Alemanha dá-nos hoje uma outra lição de «89»: a lição da prática. Vinte anos depois da reunificação, a Alemanha é o país mais influente em termos políticos e económicos da zona euro, impulsionando novas regras de jogo mais pragmáticas.
Numa pacífica União Europeia que deixou de ser romântica depois do Holocausto, que é no fundo a raiz da sua identidade, a resposta ao tempo é excessivamente alemã, mas necessária. Ainda bem que não existem alternativas viáveis à República, pois seria uma tentação deliciosa para os mais românticos.
Desta forma, o futuro de Portugal consiste numa identificação honesta com os valores da União Europeia, e com um tipo de democracia que se coadune com o cidadão contemporâneo, global, imagético e interactivo. A dúvida mais imediata é a seguinte: Em qual das mãos está o futuro da democracia europeia: na esquerda ou na direita?
Por Sérgio Coutinho
Por Sérgio Coutinho
Permita-me que discorde de vários pontos da sua crónica:
ResponderEliminarGostava, em primeiro lugar, de falr sobre a ideia que tem de democratizar uma monarquia quase república. No fundo, o que, penso eu, quer dizer, é que, por uma questão de coerência, num regime democrático, o chefe de Estado deve ser eleito. Mas, na verdade, isso não é bem assim. Historicamente, vemos que a figura de um presidente só aparece nos Estados Unidos, um país caracterizado mais pelo sentido prático do que pela coerência doutrinal, para colmatar uma falha evidente dos regimes democráticos: a liderança por um directório. Esta é, obviamente, a liderança mais democrática: para que sejam tomadas decisões é precisa uma discussão, estando excluída qualquer prepotência, por mais pequena que seja, de um "chefe", há uma representação mais eclética da vontade do povo, e muito mais, os argumentos estão à vista. Foi, aliás, este o regime instaurado depois da revolução francesa, era este o regime nas cidades-estado italianas e gregas, etc... Ora, rapidamente se percebeu a ineficácia dos directórios (as cidades estado italianas cujo governo era chefiado pelo directório foram rapidamente dominadas pela casa de Sabóia, os monarcas da sardenha, e a euforia jacobina francesa resultou numa geração de napoleões), colmatada, como já foi dito, pela ideia americana de recuperar o conceito monárquico de um "supervisor", suprapartidário, ou cujos interesses estivessem acima dos interesses de classe, não é relevante, sendo instituída a figura do presidente. É fácil de perceber o sucesso da ideia (penso que não haja, hoje em dia, nenhuma democracia governada por um directório), que me leva a subverter a sua ideia: se temos uma ideia de presidente tão monarquizada, porque não chamar as coisas pelos nomes, ainda por mais quando temos aquilo que faltava aos americanos, alguém preparado desde sempre para a tarefa da supervisão, e passar a ter uma monarquia?
Por outro lado, gostava de também falar sobre o "idealismo" que referiu. Se estamos a falar de implantação dos valores democráticos, estes vêm com o liberalismo, não com a república, como dizia o historiador Rui Ramos. Se estamos a falar das próprias personagens, não chamo propriamente idealista a quem explode com um jornal da oposição (a nação), a quem persegue jesuítas ou a quem veta o poder de voto feminino na assembleia por este ser uma "voz da reacção".
Refere o desejo de modernizar o país. De referir que, das mais de 60 escolas que abriram em 1910, só 10 estavam abertas no ano seguinte. Curiosamente, o desenvolvimento sustentado de maior expressão foi no "período negro da história da 1ª república", na ditadura de sidónio pais (ditadura essa que, curiosamente, teve a maior base de eleitorado da história da 1ª república, facto que fernando rosas se "esquece" de mencionar no seu livro dedicado a este tema).
Fala da história da arte. Não esquecer os importantes poetas do fim do século XIX (Nobre, Cesário...) e aqueles cuja formação foi, toda ela, feita durante a monarquia, além da propução ser, em grande parte, incómoda para a república (suspensão da orpheu, aproximação desta geração ao futurismo, que em itália tinha um cunha fascista, oposição à ideia de progresso, como se pode ver no caso mental português de Pessoa, etc..).
Não deixa também de ser curioso que o movimento doutrinário mais relevante dessa época seja o integralismo lusitano, evolução do partido legitimista, apoiante de D. Miguel nas guerras liberais e, por conseguinte, mais avesso à república.
Quanto às alternativas à república, ficarão para outra altura.
Pode comprovar tudo aquilo que eu disse em plataformas como: www.centenariodarepublica.org ; em livros como a história de portugal de Rui Ramos ou no República a duas caras, de Fernando Rosas e Mendo Castro Henriques.
Prazer