Guião de Sérgio Coutinho. Interpretado por Sérgio e Pedro Lucas.
Guião
A: Temos um momento ideal para conversar.
B: E se eu não quiser falar contigo?
A: Vais querer… Acredita que sim.
B: «Porque terei que ficar só
se aquilo que digo é verdade
Confesso que pretendo encontrar
uma passagem ou falsificar um passaporte
ou falar uma nova linguagem
Ama-me visto que nada acontece»
A: Que dizes?
B: «Não caiu sobre mim uma cruz» de Leonard Cohen
A: Ouvi dizer que fodeste a minha miúda?
B: Bom… não chegou a acontecer nada.
A: Então?
B: Um carro apareceu no estacionamento e ela vomitou. A bem dizer, estávamos podres de bêbedos. Como soubeste?
A: Ela soluçou na cama, fez do meu corpo um bolso onde se escondeu e disse que nunca mais te queria ver.
B: E tu que achas disto?
A: Passei a amá-la mais. «Ninguém suporta um amor que não esteja parcialmente fodido. Tem de haver escombros. Tem de haver esperança, tem de haver progresso para o pior e desejo de regresso a um tempo mais feliz. Um amor só um bocado fodido pode ser a coisa mais bonita deste mundo.» Miguel Esteves Cardoso.
B: Porém, devo confessar-te que lhe cheguei a por a mão dentro das calças, por de trás. Toquei-lhe. Aquilo parecia uma inundação. Ela tem um rabo fantástico!
B: «De súbito, o diabinho que me dançava nos olhos
Mal viu a menina a atravessar a rua,
Saltou num ímpeto de besouro
E despiu-a toda…
E a Que-Sempre-Tanto-Se-Recata
Ficou nua, sonambulamente nua,
Com um seio de ouro
E outro de prata.»
A: José Gomes Ferreira?
B: Sim. Queres um cigarro?
A: Sabes que mais?
B: Diz.
A: É melhor abrires a garrafa de tinto que trouxe.
B: Então?
A: Apetece-me festejar este intervalo, comemorar sei lá o quê. Mais tarde vou querer dançar, vou ter uma febre e convocar-te. Apertaremos as nossas mãos quentes, atarei os meus cabelos aos teus. Por fim, atiraremos copos de vidro da varanda do sétimo andar. Explodirão como um fogo-de-artifício invertido.
B: E depois vais-me bater?
A: Coisa assim.
B: Vou abrir a garrafa.
A: Enquanto fazes isso passa-me o meu telemóvel. Vou mandar uma mensagem.
B: Que vais dizer?
A: Queres que eu leia o que escrevi?
B: Sim.
A: Há um cais em cada covinha do teu sorriso e os meus olhos vão de um a outro comerciando tentações.
B: É para ela?
A: Não, é para outra.
B: És infiel?
A: Não. São charmes, fugas passageiras, palavras com armadilhas a fingir.
B: A mentira é tão bela não é?
A: E se não a filosofarmos até se pode tornar suportável.
B: Deves ter razão… Acredito que é importante ter sempre algo para recusar. Recusar a realidade dá-te a ideia que és livre: uma criatura capaz de seduzir tudo e todos. É importante ter por companheiro o pensamento desonesto, viver perto das gavetas, dos gatos, dos gestos, das decisões que não tomamos. Mentir sempre, e de preferência com um beijo.
A: Género traição de Judas? Pensava que na amizade não havia mentira.
B: Não. Quer dizer… mentir com paixão é melhor que qualquer outro tipo de mentira.
A: Se continuares assim até sou capaz de te mandar calar.
B: Acho mais bonito se tiveres coragem de dizer que tens sentimentos por mim.
A: Vai à merda.
B: Ah! Mas não digas isso assim, reclama com mentiras bonitas por favor.
B: Odeias-me?
A: Não chego a tanto. Só se o meu ódio criasse uvas e castanhas, que eu rebentaria na tua cara. Abriria janelas pelo teu corpo, pequenos hematomas embrulhados, latidos, carros eléctricos a rasgarem-te com urina e tremores duplos.
B: Então estás apaixonado por mim?
A: Nem de perto. A minha paixão fermenta talhadas de melancia fresca, vigiadas de perto por moscas horríveis. Alucinações de tempos antigos, fatalmente adjectivadas.
B: Onde estou eu afinal?
A: Tu estás do outro lado, mas sabes comer a melancia.
B: Claro. O que são as moscas?
A: São as palavras.
B: Obviamente. Essas chuvas tropicais!
A: Não. Essas são outras. Repara: «Ao vê-la esconder aquele seu lábio chorão por de trás dos dedos e fugir de uma briga salutar, pensei uma vez mais que os povos bíblicos ao legarem-nos bons preceitos de higiene, foram sábios em muita coisa – mas esqueceram-se de suturar, em devido tempo, o saco lacrimal das mulheres.» É Fernando Namora. As chuvas são sem dúvida as lágrimas femininas.
B: Mas eu gosto que uma rapariga chore… Gosto dessa pequenez, torna-a santa, mais desejável. Apetece conter, guardar, cuidar. É outro tipo de nudez: a lágrima.
A: Sinto que a minha melancolia devia ter um décimo do teu exibicionismo.
B: Porque é que dizes isso?
A: Porque eu sei como tu és, eu sei como amas. Egoísta, vaidoso, espampanante, feliz.
B: Feliz? Só se for porque há muito tempo que adio o choro, ou porque o acho no meu rosto pouco estético. Sou demasiado inútil, demasiado teatral, vim certamente com defeito quando cheguei à vida.
A: Então como explicas a tua existência?
B: Seria para Deus um suicídio político gastar corpos ao desbarato, é por isso que eu não devia estar aqui, sou a prova da incompetência. Sou portanto o resultado de algum suborno pagão, ou de desvio de capitais vaporosos. Um dia posso ser apreendido, aparecer num jornal celeste, ao lado de falsificações de costelas de Adão.
A: E esse engano não te entristece?
B: Enfim, consolo-me sozinho. Às vezes penso que me posso apaixonar. Não tenho nenhum animal de estimação que me anule a carência, portanto finjo que tenho um gato de baixo da mesa… Só depois percebo que as minhas festinhas podem ser mal interpretadas pela empregada.
A: Estás-me a dar razão com as tuas estúpidas deambulações. Não te odeio, não te amo, és coisa enjoativa. Afinal, és um tipo doente ou doloroso?
B: Tenho sempre recém-nascidas dores, todas iguais, todas diferentes. Sempre fui daqueles seres imaturos que guarda o feto no ventre muito para além da gestação. Não me tomes por uma besta. A minha dor é muito feliz no meu corpo, dou-lhe sempre toda a atenção. Devias ver como a mimo, como sou meigo. Que parvoíce… De facto, parece que só fui feito para estragar, fantasiar, e é por isso que até gostava de ser mulher, pela possibilidade de me poder sujar, de ver o mármore a amarelecer deliciosamente.
A: É isso que eu gosto em ti: não vês que toda a tua mariquice é vulgar. Tudo são pretextos para sentires, para criares a ilusão de brilhantismo nessa tua pieguice barata. Vou-te bater à mesma quando o sol nascer. Uns belos murros nessa fronha! Qual exorcismo, qual rodopio da amizade, os teus gritos vão deixar as gaivotas de Lisboa roídas de inveja.
que divertidos.
ResponderEliminarhttp://www.youtube.com/watch?v=h_d3fqMH58s