Peça 2: Guião por Sérgio Coutinho. Interpretada por Sérgio e Mariana Gama.
“Para ela” - Parte I
Estou sentado,
Concentrado em fundir o rabo à cadeira,
Quando sinto um desejo inadiável de cozinhar para ti.
Começo então a temperar os meus braços,
A amassar a minha barriga,
E quando tenho tudo pronto, um manjar razoável,
Não vens.
Fico a tirar a porcaria das unhas.
Enquanto o meu corpo esfria, fumo um dedo ou três,
Até que só me restam os dedos dos pés,
Que dão demasiado trabalho para enrolar.
Não vens mesmo.
Habituei-me a cozinhar para duas pessoas. Cozinhar é sempre estimulante,
Mesmo que vá tudo para o lixo no final. E
Não tenho duvidas que na noite em que decidires
Aterrar na cadeira vazia à minha frente,
Já não irei ter carne a vestir os ossos,
Ou arroz nos cabelos (que guardei de algum casamento entre anorécticos),
Nem a minha saliva irá saber a vinho verde.
Nessa altura, terei que engolir o meu
Orgulho,
Pedir as tuas pernas
Cheias de boa chichinha,
A tua boca a saber a shot, e as tuas orelhas para sobremesa.
Atenção: se te queimar demasiado fujo! E uso
Essa rampa de lançamento das tuas costas,
Pois se me despenhar,
Caio directamente nas tuas incontornáveis nádegas...
Confesso que não me importava de fundir ao teu rabo,
Não é nenhum segredo ou obsessão,
Mas esta cadeira em que fumo o último dedo do pé à tua espera,
Está-se a tornar insuportável.
“Para ele” - Parte II
Pouco me importa que esperes.
Estou farta de respeitar mais o teu sofrimento do que o meu.
Cru problema multidireccional no meu corpo.
Enquanto caminho de gatas pelas paredes – sonho – semeando paladares
De gato.
Não sou eu que faço por outros homens amarem-me. Tu sabes isso.
Sabes que sou moralmente superior a ti, isso atravessa-te,
Dá-te dores no estômago.
Eu conheço-te.
Porém, quem me dera por vezes espreitar para dentro do teu ouvido:
Saber o que pensas,
E latejar sobre essa orelha habituada a ouvir búzios,
Que as meninas costumam esconder no cabelo. Lacinhos e quiquiquis.
Eu sei que és daquele tipo de rapaz que ainda
Acredita que os brincos das mulheres são mágicos: sopram elegantes didascálicas.
Entende uma coisa:
Eu alimento-me para vomitar a minha natural elegância a coisas como tu.
Belisco-te? Não era a minha intenção caro senhor.
Pois fariam certamente feras manifestações pelo mundo se a minha acção roçasse
Levemente a ideia de provocação.
E se num momento decido passar nessa sua calçada, dá graças a qualquer coisa,
Por fazê-lo com primor e primas pernas morenas.
Ouve: Essa forma de ser fica-te tão mal,
Fica-te tão mal…
Não combina com aquele “eu” (Ou será aquele “nós”?).
Parte, eu já parti, porque continuas aí
A vender uma tristeza que não precisas?
Com um piscar de luzes mudo de direcção e
Anti-celebro a minha elegância. Aliás, é o contrário:
Celebro a minha elegância!
Mas se entrasse pela tua porta,
Cada palavra minha não conseguiria arrancar o seu estômago menos verbal,
Menos pudico.
Portanto atraso-me de propósito, fico um pouco mais no carro a ler a história do cinema.
É o equilíbrio feminino: há que empurrar umas arrogânciazinhas para desculpar as ternuras.
Será que vale a pena subir e falar contigo?
Vais deitar-me fora, falar da outra que não te serve, e eu vou ser subtil,
Conseguindo deitar-te ao meu lado.
No final de tudo, um final meio-deixa-andar,
Sei que vais mencionar os raios de sol que bailam debaixo da tua pele,
Para iluminar uma crucificação que fizeste por nós, ainda que erótica,
E da qual não podes sair.
Piedosamente serei a primeira a abandonar a cama.
“Para ela” - Parte III
Estou na rua e deparo-me com um visitante horizontal,
Um pensamento em forma de sombra. Nada muito proverbial.
Ficaste em casa a comer sapatos novos
E eu a adquirir qualquer tristeza urbana, entre o alcatrão molhado e os
Cinzentos de circunstância.
Um automóvel vermelho ruge, lembra-me um coração vaidoso,
Ou uma mágoa mecânica que testa temperamentos num trânsito de regressos
A casa.
Os pensamentos metropolitanos já saíram de moda,
Prefiro os teus lábios a contrastarem com o azul do céu, ou
A tua pele morena com o branco da calçada: são os meus únicos vermelhos de final de tarde.
Seremos pretensiosos quando caminhamos sozinhos? Lavadinhos mas moralmente indecisos.
Uma senhora hesita entre arrumar o carro, ou distribuí-lo em bocadinhos húmidos para os Pombos.
É difícil não é?
Marcha atrás. Imagino-te
A arrumar sapatos: as cores, as formas – parecem animais da Disney –
E tu, pequeno Bambi,
A experimentar vestidos que despes para cima da cama,
Entre brincos, anémonas, colares e algas violetas.
Ensaias mergulhos. Uma pose. Uma hesitação.
Eu abro um pacote novo de cigarros. O barulho do plástico incomoda-me mais que uma buzina.
Sonho contigo.
E tento curar uma ressaca muito vaga, muito antiga, ou apenas sinto saudades de jogar às cartas:
De menino para menina.
Papel e caneta: o amor nasceu para a correspondência, o coração é um selo por lamber.
Nada acontece.
Afias-te em malas de viagem, enquanto eu enfio-me por aí, nas colinas de Lisboa.
Caminhando, a existência dos prédios absolve-me:
Com tantas janelas iguais às tuas,
E histórias como as nossas,
Também tenho direito a mentir.
“Para ele” - Parte IV
Não falemos sobre amor, não, não, que horror!
Quero descompreender de tudo um pouco. Falar de forma diferente, meio agressiva:
Minha coisinha não me queres lamber os cantos da boca?
Que ordinária.
Podemos ser tão tudo e às vezes esquecemo-nos disso tão totalitariamente.
Que vou vestir hoje? Tudo finge ser igual a ontem. Igual à mesma cidade.
A este cansaço de estar aqui.
As minhas pernas naquela noite tremiam, com uma intrínseca e triste fricção com a alma.
Sobre a paixão que tenho eu a dizer?
Tenho vontade daquela que se entrevistava na sala de aula, aquela feita de olhares,
Que ora telefonam, ora minguam pupilarmente de medo e não respondem ao outro lado da linha:
Quem é? Quem é? Estou…
Paixão de disciplina de Português:
90 Minutos a admirar o mesmo quadrante daquele rapaz loiro,
Decorando, ensaiando, na tormentosa folia,
Tentativas ausentes no dicionário de estudante, de sentir de forma correcta.
Sim é isso mesmo, porque aí o coração trabalha sobre tábua rasa.
Aí, na disciplina de Português.
No final do dia, é essa matemática estranha que me leva a escrever um email assim:
Daqueles em que não vou dizer nada. Ponto final.
Nunca devia existir uma primeira vez,
Ou todas seriam a próxima, ou a segunda,
Deixando para último lugar a primeira.
Caso isto seja demasiado complicado, voltemos então à definição de paixão
Que é
Quimicamente mais simples.
Paixão infantil: eu quero mãe, eu quero.
Birra, espernear no chão,
Pedir a pés juntos, juntinhos, colados: eu quero!
Pedir agora a pé coxinho, a fazer a espargata, o pino, a ponte.
Olha para mim… Olhas?
O último a olhar é um pé de salsa.
E depois dizer:
O último a deixar de olhar é um pé de salsa.
Brinquedo-dor-alucinação ainda no bolsinho de trás das minhas calças.
Coração.
Afinal de contas,
Também tenho direito a mentir.
A mariana tem uma voz doce ^.^ boa escolha =)
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