Tristão Morais acorda e resolve escrever uma estória. Acha que é desta: está preparadíssimo e todas as condições exteriores estão a seu favor. Nem demasiada calma, nem demasiada dor. Pega na folha e na caneta, senta-se na sala e abre a janela. Está um belo final de tarde. A estória está na sua cabeça desde há uma carrada de dias, construindo-se aos poucos nos longos momentos de ócio que Tristão ia tendo enquanto a rotina seguia o seu curso. Admite para si mesmo que a forma é estranha, mexe com mudanças de realidade e de tempo, é uma partida ao leitor. Mas acha que já tem idade para construir boas partidas, e por isso segue adiante. O ambiente é solarengo: passa-se tudo num dia de praia. "Dia de praia", pensa Tristão, "é um bom título". Há três personagens — não, há mais, mas estas são as principais. A primeira é um homem chamado D. D é um universitário que acorda de manhã para ir para a praia com os amigos. Os amigos ficaram de chegar a uma certa hora, e D, que não tem conseguido dormir ultimamente, acorda muito antes do combinado. Levanta-se e pratica todos os gestos habituais com uma lentidão premeditada: canta mais do que uma canção no duche, aproveita para fazer a barba, ouve o programa de rádio até ao fim, toma um bom pequeno-almoço. Senta-se na mesa da sala e começa a beber o seu leite com café e a comer as suas estrelitas. Olha sempre em frente, para a mesa, pensando naquilo que o impede de dormir. Mas Tristão pára e passa para a segunda personagem: A. A é uma mulher universitária que acorda de manhã para ir para a praia com o seu namorado. Acorda a tempo, e pratica todos os gestos com calma. Tem cuidado para deixar a cama arrumada. Escolhe um biquini e pensa se deve levar esta ou aquela peça. Quer ir bonita para o namorado, mas não sabe como se decidir. Por fim lá pega em duas peças que acha que ficam bem, ri-se para o espelho como uma menina de dez anos e vai tomar o pequeno-almoço. Come um pão com manteiga e uma chávena de leite quente, e decide não levar nenhum livro para a praia, mas sim um caderno, para o caso de querer escrever. Tristão pára e ouve o ruído da rua: dois miúdos, um deles gordo e com cabelo comprido estão à bulha por causa duma bola que caiu para um quintal. "Deus, por favor, faz com que seja o puto gordo a ir buscar a bola". Mas vão-se os dois embora. Tristão encolhe os ombros e continua a escrever. A terceira personagem chama-se Dd. Tristão acha que lhe vai mudar o nome mais tarde. Dd é um homem que trabalha há dois anos e que está a passar férias com os pais, como faz desde sempre. Contudo, este ano Dd está em baixo, e não lhe apetece nada ir com os pais à praia. Mas como não lhe apetece fazer outra coisa, Dd resigna-se ao seu destino. Pega num livro grande e põe-no na mochila, enquanto a Mãe lhe serve o pequeno-almoço: leite, torradas e sumo de laranja. O pai lê o jornal e Dd vai lendo a parte de trás do mesmo e lembra-se de que fazia o mesmo quando tinha treze anos.
Tristão volta a parar. "É melhor explanar tudo, para saber até onde é que vão as linhas". Pega noutra folha — tem de ser sempre uma folha, para que se saiba — e escreve o nome dos três personagens com uma linha à frente de cada um. D e A namoravam, mas agora A namora com outro rapaz. D não sabe da notícia, e apetece-lhe estar com A, falar com ela, saber como é que vai a vida. Quem sabe, tentar reiniciar as coisas. D está sozinho, e isso custa-lhe. "Custa a todos, não é?". A, por seu turno, sabe que tem de dizer a D tudo. Não sabe como A vai reagir. Gosta do seu novo namorado. Mas tem de falar com D. Dd é D daqui a uns anos (dois, mais precisamente), vivendo uma catarse sem precedentes e mergulhado numa crise existencial. Vão todos para a mesma praia, mas nunca se encontram. "O truque é fácil: o gajo aparece mais velho com os pais relembrando-se de tudo o que lhe aconteceu naquele dia porque naquele dia — o dia de praia — é que a vida dele se tramou à séria. Se isto fosse um filme teria mais graça, mas não é um filme, é uma estória." Olha para o esquema, sorri, e vai ao frigorífico. Tira a garrafa de coca-cola fresquinha e enche um copo grande e volta para a mesa. Continua a sentir-se preparadíssimo e não quer parar. Pega na outra folha. "Portanto, eles acordam, e agora vão a caminho da praia. Que se lixe, vou escrever como se já estivessem na praia". E escreve. D, A e Dd estão na praia. O primeiro está com três amigos e jogam futebol, mais concretamente ao jogo dos passes porque nenhum deles quer correr muito. A está com o namorado na outra ponta da praia. Estão sentados perto da água e trocam alguns carinhos. O namorado beija o ombro de A. "Espera lá, o namorado beija o ombro de A? Isso é uma cena que eu faria, e este gajo não sou eu, não pode ser. Fosgasse, como é que eu faço isto? Hum… Já sei. Ele… Não. Hum… Voltando atrás, para ver se o consigo pensar de trás". O namorado de A vem buscá-la num carro com quatro anos mas que parece que tem dois. O carro tem leitor de cêdês. Ao passar a ponte eles ouvem o disco dos Prefab Sprout, From Langley Park to Memphis. "Não, eu ouviria isso, não com uma miúda mas ouviria isso. Hum… Este gajo tem cara de quem ouve, por exemplo, Editors. Isso, Editors. Portanto um tipo a armar-se ao alternativo. Não, estou a ser mauzinho. Fosgasse. Está bem, ele ouve Animal Collective. Merryweather Post Pavillion. Parece-me bem". A não gosta muito dalgumas canções, e diz-lhe, e ele passa essas canções à frente. Sorriem. Estão de óculos escuros de marca branca. Quanto a Dd, está no meio da praia, com o livro aberto na página dois há uma hora. A mãe bronzeia-se e o pai lê o jornal. "Malta simples". Dd olha para a sua volta mas só se lembra daquele dia, daquele momento. Fecha o livro e deita-se de barriga para baixo na toalha. Tenta dormir. Não consegue. Está com calor, decide ir à água. Entretanto D e A vão trocando mensagens escritas sem saberem que estão ambos na mesma praia. Combinam encontrarem-se no dia seguinte para tomarem café. D fica feliz por isso acontecer, mas não tanto como julgava que ia ficar. Por um instante sente um aperto na barriga, como se algo inevitável tivesse sido posto em marcha. A ri-se, está feito. E beija o namorado, na boca, antes de ir guardar o telemóvel e de irem os dois para a água. Dd anda até não ter pé. Não há muitas ondas no mar — isto é estranho, porque dois anos antes haviam muitas ondas e estava bandeira amarela. Hoje está bandeira verde, pelo menos para Dd. Ouve-se um estalido. "Deus, diz-me que é o puto gordo que vai buscar a bola." Um terceiro rapaz, mais velho, acabou de trepar o muro do quintal e já recuperou a bola.
A coca-cola está quase no fim. D também vai à água com os amigos. Os amigos riem-se, e D também se ri, como pode. Ainda sente o aperto na barriga. Quanto aos outros, bem, estão felizes, ou pelo menos parecem estar. D pensa se eles estão mesmo felizes ou se fingem bem, e depois pensa como é que as pessoas reagem e vivem com as suas tristezas quando estão com outros. Dd pensa no mesmo enquanto olha, mergulhado até ao pescoço, para os seus pais, a lerem um jornal. Dd queria ser como eles, ou seja, não queria estar sozinho. "Custa, não custa?" Está bandeira verde e Dd lembra-se da bandeira amarela e dele e dos amigos dentro do mar, a mergulharem rápido. Lembra-se de estar de pé e de olhar para o céu e de ver milhares de gaivotas a sobrevoarem-nos, fugindo do mar. A imagem era cinematográfica, e a memória assim ficou. Dd está agora a boiar no mar e olha para o céu mas não passam gaivotas. Entretanto, A vai à água com o seu namorado e é feliz.
Acaba a coca-cola e Tristão senta-se no sofá. Fica a imaginar como é que Dd sobreviveria depois desse dia, que miúdas é que iria encontrar e com quais é que faria amor, e como é que elas ficariam ou não com ele, porque no fim ele ficaria com alguém. "Vou bazar". Tristão pega nas folhas e dobra-as e abre a gaveta e tira o baú — uma capa preta cheia de folhas dobradas — e guarda-as e fecha a capa. Depois vai até ao quarto e pega no leitor e nos édefones. Coloca-os nos ouvidos, abre a porta e sai de casa. Está uma tarde bonita.
Por Martinho
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